“As pessoas acreditam em qualquer bobagem se você assustá-las o suficiente.”
[Contém Spoilers]
Última atualização em 30/12/2019 às 10h20
Hugh Campbell perde sua namorada, Robin, em um acidente de alta velocidade causado por A-Train, um super-herói profissional. Enquanto isso, Annie “Starlight”, criada pela mãe para se tornar uma famosa combatente do crime, se torna a mais nova membro dos Sete. Desde então, Hughie e Annie descobrem da pior forma as diferenças entre a reputação e a realidade do principal grupo de super-heróis do país.
A série The Boys, lançada em julho de 2019 pela Amazon, é uma adaptação do comics de Garth Ennis e Darick Robertson (2006-2008), que retrata uma sociedade em que super-heróis se tornam celebridades e trabalham como uma força paralegal de socorro, investigação e combate ao crime. The Boys é mais um herdeiro de comics como Watchmen (1986-1987) e O Reino do Amanhã (1996), que dialogam com as eras de Ouro e Prata dos quadrinhos americanos – subvertendo alguns pressupostos centrais dos quadrinhos antigos – e renovam o gênero para um mundo pós Segunda Guerra e suas novas preocupações, numa virada mais “realista”.
(Falei mais sobre as Eras de Ouro e de Prata dos quadrinhos americanos nessa postagem aqui.)
Se te perguntas porque ainda existem narrativas de super-heróis, respondo: é porque elas têm algo a dizer. O super-herói como gênero e como personagem é um reflexo das nossas relações com o Poder. Poder como dominação e controle da humanidade sobre si ou seu entorno. Geralmente acompanhado do seu inverso correspondente, a exposição diante da impotência e da vulnerabilidade. Por esta razão, o gênero dos super-heróis é capaz de abordar a Dialética do Poder associado, por exemplo, com os temas da guerra e (mais recentemente) com o imperialismo e o terrorismo. The Boys vai exatamente por este caminho.
Um dos pressupostos da nossa civilização é a crença de que todas as pessoas são iguais, possuem igual valor e igual potencial humano. Em The Boys, o superpoder dos super-heróis expõe a fragilidade deste suposto equilíbrio, e explora com sensibilidade os veículos de opressão nas relações de poder que permeiam as negociações comerciais, as decisões políticas e especialmente as relações pessoais. Trata-se de uma história de super-heróis já desencantada com o "heroísmo" dos heróis, que questiona como seria uma sociedade em que aqueles que detém Poder não o fazem necessariamente por um bem maior.
Filtro de Realidade
A virada realista passa pela recalibração dos elementos fantásticos de acordo com sua aproximação da realidade (ou da nossa percepção do real). É como se a ficção passasse por um “filtro do real”, que destaca sobre a fantasia aspectos do nosso mundo tal como o conhecemos. Existem dragões, mas eles são usados como armas de destruição em massa em guerras de dominação; carros podem falar, mas eles desenvolvem sociedades e romances muito parecidos com os humanos; super-heróis podem existir, mas eles podem se tornar cínicos, psicopatas, corruptos e gananciosos.
"É dinheiro que não recebemos."
The Boys aplica sobre a fantasia uma camada de realidade ao expor a contradição entre a imagem externa dos heróis, que permanece tal como as suas versões clássicas (homens e mulheres que trabalham exaustivamente em prol da humanidade), e a vida oculta dos heróis – ou supers. A característica da realidade que The Boys escolhe destacar é a capacidade corruptiva do poder, da fama e do lucro.
O poder corrompe
A série explora a fusão entre realidade e ficção ao incorporar temas atuais em torno da nossa relação com o Poder – ou os abusos de poder. Ela cria uma sociedade muito parecida com a nossa que trata pessoas com superpoderes como celebridades, e aborda os riscos da ausência de supervisão e restrição sobre o exercício do Poder. Pressupõe-se que o Poder é capaz de corromper a maioria das pessoas.
O que farias se fosses capaz de ficar invisível? Como seria poder ver sem ser visto, e fazer qualquer coisa sem ser descoberto?
"Não acreditaria nas coisas que eles são capazes de fazer"
Segundo o mito do Anel de Giges, ninguém é realmente bom, honesto e íntegro quando capaz de fazer o que quiser sem receio de ser descoberto ou de sofrer retaliação. Justiça só é capaz de reinar quando todos estão igualmente sujeitos à objeção e observação uns dos outros. O superpoder dos super-heróis desequilibra este ciclo de sujeição. Eles assumem um patamar sobre-humano e sua mera existência restabelece na sociedade a hierarquia do domínio do mais forte.
"Meu superpoder não é invisibilidade. É ler as pessoas.
Observá-las quando acham que estão sozinhas."
The Boys não se contenta em expor o desequilíbrio entre supers e humanos comuns. O verdadeiro Poder, explica Translucent, está no modo como cada um usa (ou abusa) suas habilidades e explora as suas vantagens. Os poderes dos supers é apenas a abordagem mais evidente da série, mas não é a única. Foi a supervelocidade de A-Train que matou Robin. Mas foram os contatos e estratégias midiáticas da Vought que o mantiveram impune.
Através da impunidade de A-Train e a sua inabilidade de sentir remorso, a série expõe imediatamente o desequilíbrio de forças entre os opressores e os oprimidos. E aponta que ter superpoderes não é o único problema.
"Como um inseto na auto-estrada."
Os Sete, os super-heróis mais conhecidos, são também grandes celebridades. Na condição de celebridades, como deves imaginar, forma-se em torno deles outra camada que os separa das pessoas comuns. Os principais super-heróis gozam de fama e riqueza tais que se torna simples escapar de qualquer acerto de contas, pelo menos enquanto ainda tiverem valor para a empresa que os administra. A multimilionária Vought Internacional, é o retrato da “empresa do mal” (pleonasmo, cof cof). Seus heróis são administrados por Madelyn Stillwell. Na primeira temporada é ela quem personifica o padrão de comportamento da Vought. E como principal gestora à frente deste departamento, ela exerce todo tipo de abuso com seu poder político, social e financeiro. Para atingir seus objetivos, Stillwell oprime de seus próprios funcionários, dos seus heróis e até políticos ligados ao governo.
Todo super-homem possui sua kryptonita, certo? A abordagem realista em The Boys também explora o outro lado das relações de poder – a impotência. Tanto os supers quanto os humanos normais possuem três fraquezas: a sua reputação, as pessoas próximas, e os limites do que conhecem e são capazes de conhecer.
A meu ver, a série explora muito bem a dicotomia entre Poder e Impotência. A reputação dos heróis é uma de suas maiores preocupações. Eles precisam responder ao público e à mídia por cada um de seus atos (caso sejam descobertos), e por isso buscam diversas formas de contornar essa fraqueza. É na tentativa de mitigar seus pontos vulneráveis que os heróis exercem os maiores abusos de poder. Não à toa, Homelander, o mais poderoso dos Sete, se preocupa constantemente com sua imagem pública a ponto de abandonar à morte todos os passageiros no voo 37, em vez de admitir que não foi capaz de um resgate perfeito.
Enfim, termo “super-herói” já pressupõe uma natureza dupla que destaca tanto as habilidades e poderes sobre-humanos quanto a sua balança moral, muitas vezes exemplificada na sua capacidade de auto sacrifício. É esta a sua diferença, afinal, do supervilão – aquele que usa seu poder de modo abusivo e individualista. O herói seria aquele capaz de encontrar o anel de Giges e não usá-lo ara fazer o mal (escolhendo destruí-lo, por exemplo). A depender da história, dá-se mais ênfase a um aspecto do que ao outro, mas o duplo pressuposto Poder-Virtude está lá, no nome. A narrativa de The Boys aborda precisamente a desconexão entre Virtude e Poder.
E nesta sociedade em que super-heróis são gananciosos, corruptos e degenerados, enquanto trabalham para uma empresa de 'combate ao crime', quem se tornam seus inimigos?
Quem são os inimigos?
Todo herói precisa de um vilão. Um gera o outro, seja por contraste narrativo, seja literalmente no enredo. A corrupção dos super-heróis cria o grupo de vigilantes sem poderes chamado "The Boys" (ou "Os Rapazes" em português), formado por Hughie, Butcher, Frenchie e Mother’s Milk, e por último Kimiko, a Fêmea (única entre eles com poderes). Ao reagirem aos abusos de poder cometidos pelos heróis, eles são considerados perigosos caçados pela Vought. O Inimigo é definido por aquele que tem o Poder.
Qualquer tentativa de exercer um poder totalizante precisa de inimigos internos e externos. Vought, em busca do lucro num ramo completamente novo, criou os supers desde 1971 usando experimentos com o Composto V em bebês nos Estados Unidos. Anos depois, impelida pelo sucesso nacional, Vought quer expandir seus serviços para alimentar o comércio de armas no exército americano. Pronta para lucrar com problemas que ela própria desenvolveu, Vought inicia experimentos noutros países, armando grupos de guerrilha local (de onde Kimiko veio).
Quem dá o passo final, contudo é Homelander. O líder dos Sete toma para si a tarefa de trazer os super-heróis para as forças armadas americanas. Ele tira proveito da queda do voo 37, sequestrado por terroristas, e altera o seu discurso normalmente pacificador para um tom mais combativo.
"Existe uma oportunidade aqui."
O discurso inflamatório sozinho não será suficiente, é preciso alimentar o medo para aumentar (e vender) a demanda de segurança correspondente. Homelander sabe disso, e por esta razão usa os recursos da Vought para criar para o Estado Islâmico o vilão-terrorista superpoderoso chamado Naqib ( نقیب ou “capitão”). Diante de um super-vilão-terrorista, agora o governo americano não pode fazer outra coisa se não aceitar contratar os supers da Vought como recurso militar.
Como deves ter percebido, qualquer semelhança com a história recente da política imperialista Norte Americana não é mera coincidência.
Associação dos Sobreviventes a Danos Colaterais
O abuso de poder leva a danos colaterais. No encontro da A.C.D.S. (Association of Colateral Damage Survivors) Butcher quer que Hughie ouça os relatos de pessoas que sofreram danos apenas por entrar em contato com super-heróis, para que Hughie se convença dos perigos de se envolver com Annie. Essa sessão é importante, não apenas como ponto de contato entre o passado trágico de Butcher e de Hughie, mas também para lembrarmos que os danos colaterais existem.
Atentos ao enredo principal, por vezes nos esquecemos das várias mortes e dos prejuízos humanos daqueles que cruzaram o caminho dos supers e dos vigilantes. As vítimas que não são apenas Robie, Becca, Popclaw e os passageiros do voo 37. Mas também todas as pessoas no pano de fundo da narrativa: o prefeito Baltimore e seu filho, o senhorio do apartamento, o senador Calhoun, entre muitos outros. Retornam nesta cena as vitimas, geralmente esquecidas, das consequências das ações e escolhas daqueles que em algum momento estiveram em situação de poder. Nela, somos forçados a pensar na quantidade de pessoas, para além da estatística, que foram mortas, prejudicadas e ignoradas até mesmo por nós da audiência.
Este é também um exemplo de como a estrutura de opressões é capaz de ser reforçada pela própria vítima da opressão e do abuso. As pessoas no encontro da A.C.D.S. são incapazes de culpar ou exigir justiça contra aqueles que as feriram; seja por negligência, descontrole ou acidentes evitáveis. É como o pai de Hughie reage à morte de Robin.
Parte II
A série The Boys mostra como o poder corrompe as pessoas. Como a violência pode ser explorada sem escrúpulos em prol da fama e do lucro. E como os atos de violência e sua perpetuação nas injustiças nutre um ciclo de opressões que se auto alimenta. Cujo fim parece ser apenas possível quando os heróis, com ou sem superpoderes, se entreguem ao auto sacrifício que representa fazer a coisa certa.
Acho muito interessante o modo como The Boys, focado nas relações interpessoais, aborda as várias voltas destas relações de poder. Como esta postagem ficou muito extensa, eu gostaria de acrescentar uma segunda parte. Nela explorarei o modo como os temas que abordei aqui se reproduzem nas personagens principais da série. Acrescida, quem sabe, das conjecturas para a segunda temporada.
TL:DR ~ Muito Longo – Li foi nada!
Histórias de super-heróis são sobre Poder e Impotência.
The Boys retrata as relações de abuso de poder e vulnerabilidade, nas relações pessoais, no mercado e na política interna/externa dos Estados Unidos.
Ganha pontos extras quem já leu A República de Platão.
O inimigo é determinado por quem detém o Poder.
A pior vítima é aquela que absorve em si mesma o sistema opressor.
A postagem sobre a série de Watchmen está aqui!
Se entendes inglês, recomendo assistir a este vídeo do Wisekrack sobre The Boys, recomendado pelo André nos comentários!
Um ponto que eu gostaria de destacar é a transição de mídias, que na minha opinião se faz de maneira muito positiva. Ao adaptar os quadrinhos para o formato série de TV, os roteiristas e showrunners promovem mudanças significativas que fãs mais "puristas" talvez não apreciem ou mesmo acabem detestando. Eu, pelo contrário, acho-as não apenas boas, mas também necessárias. Explico: o autor dos quadrinhos, Garth Ennis, é conhecido na indústria pela sua abordagem, digamos, "despudorada" e radicalmente violenta. Seu intuito, na maior parte das suas produções, é apresentar situações brutais e chocantes, visando o absoluto desconforto do leitor. Isso funciona em certas ocasiões, porém em outras, como eu considero ser o caso dos quadrinhos The Boys, perde-se em termos…
Gostaria que fossem respondidas as questões levantadas pela Kate no comentário dela e acrescentaria o episódio sobre The Philosophy of the Boys do canal do YouTube Wisecrack, que toma o conceito de dominação como chave interpretativo dos principais temas e conflitos da série.
The Boys is truly quite a good show with some painful shortcomings. In Mike Hale's review of it in the NYT he emphasized its capacity of, despite being lighter than Moore's "Watchmen", still touching the same points of a counter-hero culture that recovered actuality in the era of the Disney Empire.
Graeme Virtue, on the other hand, in her review of the series in The Guardian, mentioned the kinship of the series with both the comics and the TV adaptation, also in Amazon, of "Preacher".
Literary critic Kenan Malik said in a interview for Channel 4 (sorry for the amount of English references) that series like The Boys are not about how super powers would fundamentally change human existence altogether,…