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Foto do escritorFernanda Borges da Costa

Justiça Ancilar

Atualizado: 11 de fev. de 2020

“O Império me obrigou a matar milhares. Mas gora eu tenho apenas um alvo.”

[Última Alteração em 07/02/2020 às 11h55]



Justiça Ancilar é o primeiro livro da trilogia Império Radch, escrito pela autora americana Ann Leckie. Trata-se de uma Space Opera de Ficção Científica sobre um império intergaláctico, inteligência artificial e expansionismo militar. Foi lançado em outubro de 2013 pela Obrit Books, com o título “Ancillary Justice”. Era então o primeiro romance escrito pela autora de contos, e foi largamente premiado e elogiado pela crítica. Foi o primeiro livro a ganhar ao mesmo tempo os maiores prêmios de Ficção Científica da língua inglêsa: Hugo, Nebula, Arthur C. Clark e BSFA; além do Locus e Kitschies pela melhor obra estreante. Sua tradução, bem executada por Fábio Fernandes, foi lançada apenas em 2018 pela Editora Aleph.


Ganhei este livro em e-book de uma amiga próxima há quase cinco anos e o devorei imediatamente. Desde então, acho que o li duas ou três vezes por ano, junto com o restante da trilogia (se eu tivesse a edição física, já estaria tão gasta que precisaria substitui-la em breve). Justiça Ancilar é uma narrativa que se torna ainda melhor com uma ou duas releituras, dado a forma como os seus acontecimentos foram estruturados e pela profundidade de suas camadas. Este certamente foi um dos livros mais interessantes que tive o prazer de conhecer nesta última década, que retoma a questão da Inteligência Artificial de forma nova e instigante, com uma narrativa ao mesmo tempo épica e pessoal.


A ficção científica tem dentro de si mesma a qualidade de nos fazer repensar nossa visão de mundo, ou até mesmo adquirir um ângulo completamente novo de compreensão. E essa é uma das qualidades inquestionáveis de Justiça Ancilar, que nos desafia a expandir nossa perspectiva através da sua narrativa.Este livro nos mergulha imediatamente na ação da história e nos deixa descobrir pouco a pouco o largo escopo cultural e narrativo que traz. É escrito de um modo peculiar, que pode ser desafiador para aqueles que não estejam acostumados ao estilo e ao gênero. Mas garanto que vale muito à pena explorar suas páginas, e descobrir mais sobre a aventureira Breq e a nave espacial Justiça de Toren.


Aqui encontrarás um breve resumo (sem spoilers) de Justiça Ancilar, bem como uma lista de personagens principais, um resumo expandido (com spoilers) e minha interpretação sobre os seus três temas principais. Acrescentarei também, logo depois do resumo sem spoilers, um guia de leitura para aqueles que se sintam desafiados pelo seu estilo de escrita e queiram se aventurar neste épico espacial – algo que recomendo muito!



Breve Resumo [Sem Spoilers]


Justiça Ancilar é um épico espacial futurista, cuja história se passa em um universo povoado pela raça humana que habita diversos planetas. A maioria deles pertencente ao Império Radch, cuja expansão estendeu-se por mais de três mil anos. Este Império conquistou centenas de sistemas graças a sua capacidade militar superior, cuja força deriva de suas naves de guerra comandadas por Inteligência Artificial, e graças ao forte governo da sempre presente líder, Anaander Mianaai.


A IA de uma nave radchaai é uma mente poderosa capaz de comandar não apenas seu repositório físico, mas também corpos auxiliares, escravizados e conectados ao seu núcleo principal. Seus ancilares são soldados e mantenedores da embarcação, todos ligados por uma única consciência sob o comando dos oficiais humanos. Através de uma tecnologia similar a essa, Anaander Mianaai vive há 3 mil anos com vários corpos espalhados por todo o seu Império.


Seivarden na neve. Artista Tinu.


A narrativa de Justiça Ancilar acompanha a busca de Breq, uma jovem recém-chegada no gélido planeta Nilt a procura de um artefato misterioso. Breq é, na verdade, o segmento auxiliar Um Esk Dezenove, que no passado fora parte da nave porta-tropas Justiça de Toren, que desapareceu há dezenove anos. Enquanto caminha sozinha neste planeta remoto, Breq encontra alguém desacordada na neve. A pessoa revela-se ser Seivarden Vendaai, uma ex-oficial do Império Radch que serviu na Justiça de Toren mil anos antes. A improbabilidade deste encontro leva Breq a salvar Seivarden, a despeito da urgência de sua missão e da ausência de qualquer interesse ou simpatia que tenha pela ex-oficial.


Uma nave entra no bar. Artista Malicius Monkey.


Enquanto Breq e Seivaren viajam juntas a procura de uma pessoa fugitiva num canto inóspito de Nilt, desvela-se aos poucos o passado de Seivaren e os acontecimentos em torno do desaparecimento de Justiça de Toren. Ambos os eventos são essenciais para a descoberta da fraqueza secreta de Mianaai, que pode até levar à cisão e queda do próprio Império Radch.



Guia de Leitura [Sem Spoilers]


Destaco três características para levares em conta ao ler Justiça Ancilar: o uso do feminino como gênero neutro no idioma radchaai, as duas linhas temporais e a capacidade de interação e perspectivas múltiplas e concomitantes da Inteligência Artificial.


(1)

A língua principal do Radch, o radchaai, não assume gênero. Ann Leckie convenciona o uso do feminino em sua escrita para o inglês (e por conseguinte, para o português). De modo que sempre que as personagens conversam em radchaai, torna-se desnecessário especificar gênero. Essa peculiaridade, contudo, não se aplica a outras línguas e a transição para elas abre janelas de normalidade na nossa leitura cotidiana, enquanto atrapalha a vida de Breq com certa frequência. Por conta destas transições entre idiomas, sabemos que Seivardeen e Anaander Mianaai são homens, e que Breq tem um corpo feminino. Mas na maioria dos casos a designação de gênero é ambígua e tem pouca relevância para a narrativa. A autora registrou sua opção de escrita em seu site:


  • “O uso de “ela” foi uma convenção de tradução – o idioma radchaai não apenas não utiliza pronomes com gêneros para se referir a pessoas (aliás, muitos idiomas reais não utilizam), mas gênero não é relevante para esse povo. (…) Por conveniência, eu “traduzo” tudo como “ela”. Isso não indica o gênero de nenhum personagem. Apenas significa que, quando Breq (ou outra personagem) fala em radchaai, é assim que o pronome original é traduzido para o inglês.”


Perceber um mundo em que gênero não é relevante é estranho e desconcertante para quem experimenta uma linguagem que é totalmente dependente destes conceitos. Isso torna a experiência de ler Justiça Ancilar algo novo e desafiador, que extrapola os limites da caixinha com que normalmente pensamos. Eu te recomendaria ceder o mais rápido possível à proposta, e se deixar levar por uma linguagem mais preocupada com os propósitos de cada personagem, suas intenções, moralidade e desafios pessoais, sem distinção entre macho e fêmea. O uso do feminino como identidade neutra é o golpe final sobre a nossa comunicação padrão, que em línguas como a portuguesa e inglesa emprega o masculino como sendo neutro.


(2)

A história de Breq no presente é intercalada com uma segunda linha temporal, que ocorre dezenove anos antes. Nela, a personagem ainda é a imensa consciência de Justiça de Toren, atuante na unidade militar Um Esk (composta por 20 soldados auxiliares). Um Esk trabalha sob o comando da Tenente Awn Elming, que foi destacada para patrulhar em Ors, uma comunidade do recém conquistado planeta Shis’urna. Conforme a busca de Breq se desenvolve no presente, nos é revelado aos poucos os últimos dias da nave Justiça de Toren antes de seu desaparecimento. A alternância entre as linhas é bem construída e auxilia na compreensão da história e dos propósitos da personagem principal. Há ao mesmo tempo um mistério a ser revelado no passado e o suspense que paira sobre a difícil tarefa de Breq no presente. O momento em que as duas narrativas se encontram tem grande impacto dramático e é especialmente satisfatório.


(3)

Um Esk é uma década, uma unidade militar que na missão em Ors contém vinte auxiliares, corpos humanos ligados à consciência da nave Justiça de Toren. Justiça de Toren é a personagem principal das duas linhas temporais, mas enquanto no presente temos apenas a perspectiva de Breq (o segmento Um Esk Dezenove), no passado é possível saltar para a visão de qualquer um dos vinte corpos comandados por Um Esk, ou até mesmo subir para a nave porta-tropas orbitando em torno do planeta Shis’urna. Essa alternância de pontos de vista permite um modo novo de interação do ponto de vista da personagem principal. No início, as transições entre os segmentos Um Esk ocorrem ocasionalmente e de modo bem marcado. Ann Leckie escreve muito bem e de modo imersivo, que permite ao leitor experimentar como seria poder compartilhar sua própria mente em diversos corpos com múltiplas perspectivas.


Leve estes três pontos em conta ao ler Justiça Ancilar e não será difícil acompanhar sua história.



Resumo Expandido [Com Spoilers]


Taverna de Nilt. Artista William Mitchell.


Para a religião do Radch, não existe coincidências, tudo é como Amaat deseja. Ao encontrar Seivarden Vendaai em Nilt nas circunstâncias mais improváveis, Breq decide salvá-la e trazê-la consigo. Depois dos primeiros socorros e uma noite de sono, Breq aluga um veículo para transportá-las até uma região remota nos campos de Nilt. Ela procura pela Dra. Arilesperas Strigan, médica que residia na estação espacial Dras Annia, fora do Radch. Strigan colecionava itens raros da extinta civilização Garsedd. Todo este sistema solar fora completamente dizimado mil anos antes, quando seus líderes fingiram render-se ao Radch, apenas para tentar matar Anaander Mianaai utilizando uma arma fabricada pelos alienígenas Presger. Breq suspeita que a Dra. Strigan tenha encontrado uma destas armas, indetectáveis e capazes de perfurar qualquer superfície. A nave que Seivarden comandou fora destruída por esta tecnologia.


“Acompanhando o relatório, havia uma gravação da Espada de Nathas: era irrefutável que um segmento auxiliar vira a arma, mas segundo os outros sensores da Espada de Nathas, simplesmente não existia nada. Uma eleitora garseddai – contra todas as expectativas cercada pela prata reluzente da armadura estilo radchaai que apenas os olhos da auxiliar podiam ver – disparava a arma, a bala rasgava a armadura da auxiliar, matando o segmento, e, com seus olhos destruídos, arma e armadura desapareciam da existência.”

Depois de um breve contratempo, Breq finalmente encontra Strigan.


Um breve contratempo. Artista Jessica Liu.


A médica reluta em admitir que possui a arma garseddai, e não foge ou expulsa de sua casa as visitas inesperadas por curiosidade. Strigan investiga os propósitos de Breq enquanto ministra medicamentos em Seivarden para mitigar os efeitos de seu vício em kef. Enfim, para convencer Strigan a lhe vender a arma, Breq revela o seu passado e o seu verdadeiro propósito: a arma presger é essencial para seu plano de matar a Senhora do Radch.

Logo após as últimas etapas da anexação de um sistema ao império inicia-se a oficialização dos habitantes locais em radchaai, cidadãos do Radch. Shis’urna faz parte do último sistema a ser anexado pelo Radch sob o comando de Anaander Mianaai. A nave porta-tropas Justiça de Toren ainda orbita o planeta junto com várias outras, e sua década Um Esk, comandada pela tenente Awn Elming, auxilia na transição das tropas militares para o policiamento civil da região. Tenente Awn reside há cinco anos na comunidade religiosa de Ors, uma área pouco habitada exceto durante a grande peregrinação religiosa ao templo de Ikkt. Devido a proeminência templo sagrado e a liderança da sacerdotisa chefe de Ikkt, Awn favorece morar em Ors em vez de na próspera cidade vizinha de Kould Ves, que por sua vez é patrulhada pela unidade militar Sete Issa sob a liderança da tenente Skaaiat Awer. A tenente Awn é a oficial de maior escalão na região, que ainda não tem um governo e uma administração radchaai estabelecidos, o que a torna a representante política do Radch no local.


Diorama de Ors. Artista Malicious Monkei.


Mas o reconhecimento de Awn sobre a liderança religiosa ofendeu os comerciantes tanmind e cidadãos mais ricos de Kould Ves, despertando inveja e desgaste político. Durante seus últimos dias em Shis’urna, Um Esk e tenente Awn presenciam uma tentativa de golpe executada pelos habitantes da cidade Kould Ves contra os pacatos moradores da comunidade de Ors. Alguém entre os tanmind escondeu armas contrabandeadas no pântano de Ors e assassinou a sobrinha de um de seus comerciantes mais ricos para que pudessem acusar as orsianas de dissidência contra o império. O atentado falha graças a cooperação dos cidadãos locais e a efetiva intervenção de Um Esk e Awn, que recuperam os caches e alertam a população.


“A partir daquele momento eu era vinte pessoas diferentes, com vinte diferentes conjuntos de observações e memórias, e só consigo me lembrar do que aconteceu reunindo aquelas experiências separadas.”

Artista desconhecido.


Durante uma visita inesperada de um único clone de Anaander Mianaai ao templo de Ikkt, a comunicação de Um Esk com sua embarcação em órbita é repentinamente desligada, assim como a conexão entre todos os seus vinte segmentos. O caos se instarua quando moradores tanmind de Kould Ves, liderados por Jen Shinnan, descem até a área pantanosa de Ors. Ele acusava as orsianas pela morte de sua sobrinha, e os incriminam por traição diante da Senhora do Radch dentro do templo, apontando a presença das armas contrabandeadas. Contudo, a tenente Awn apresenta as evidências que possui de que as acusações são falsas e foram forjadas com o propósito de criar discórdia. Tudo parece se resolver, até que Mianaai ordena a morte dos tanmind sem julgamento, e comanda que a tenente fuzilá-los ali mesmo no templo, para o espanto de Awn e das sacerdotisas presentes. A insubordinação contra uma ordem direta de um superior dá prerrogativa para a morte no exército radchaai. Ainda assim, Awn Elming hesita. As suas circunstâncias lembram os eventos recentes da longínqua Estação Ime.

“– Se alguém quer que eu vá embora, essas pessoas estão na cidade alta – disse a tenente Awn, e em particular eu concordava, mas não falei. – Mas não pode ser isso. Se alguém que pode fazer isto – ela gesticulou para o caixote – me quisesse fora daqui, seria bem fácil: era só dar a ordem. E Jen Shinnan não teria esse poder. – Não dita, pendendo por trás de cada palavra, estava a lembrança das notícias de Ime. Do fato de que a pessoa que revelara a corrupção lá estava condenada a morrer, talvez até já estivesse morta. – Ninguém em Ors poderia ter, não sem… – Não sem ajuda, de um nível muito alto, ela teria certamente dito, mas deixou a frase morrer.”

Recentemente Mianaai anunciou que o Radch não produziria mais corpos auxiliares para as suas naves espaciais. Mas em Ime ocorria uma produção secreta e ilegal de escravos ancilares. Essa corrupção do governo local só foi revelada por causa da insubordinação de um soldado humano, o segmento Um Amaat Um da Misericórdia de Sarrse. Ela decidiu que não estava disposta a matar as alienígenas Rrrrrr e as pessoas que as acompanhavam quando surgiram de repente no sistema de Ime, contra as ordens da governadora local. As notícias recentes de Ime e os eventos no templo alimentam as suspeitas de Awn e Skaaiat de que a própria líder do Radch estaria por trás da tentativa golpe. A condenação de Jen Shinnan e dos outros cidadãos parece proposital para ocultar alguma forma de corrupção da qual a Senhora do Radch tinha conhecimento. Logo no dia seguinte, a tenente Awn e Um Esk são enviados de volta para Justiça de Toren, que recebeu ordens para partir de Shis’urna. Durante a viagem, o desencadeamento de traições e divisões políticas nas ações de Anaander Mianaai levam à destruição da nave Justiça de Toren, restando apenas o seu segmento Um Esk Dezenove.



Personagens Principais

  • Justiça de Toren, a Inteligência Artificial de dois mil anos de vida que dirige um dos vários porta-tropas do Império Radch, e seus segmentos ancilares compostos por corpos humanos escravizados para dar lugar à mente da nave. Uma das unidades militares de Justiça de Toren, a Um Esk, possui um gosto peculiar por música e adquiriu o costume de cantar.

  • Breq do Gerentato, determinada e perigosa, foi o segmento Um Esk Dezenove e é agora o último fragmento restante da Justiça de Toren. Desde o desaparecimento da nave, entregou-se a uma jornada de vingança contra Anaander Mianaai.

  • Seivarden Vendaai, ex-oficial que serviu em Justiça de Toren antes de ser promovida e tornar-se capitã da nave Espada de Nathtas. Durante a ocupação de Garsedd teve sua nave destruída logo depois de ser salva por Espada de Nathtas e seu módulo de fuga foi encontrado apenas mil anos depois e, incapaz de lidar com as condições de seu retorno, viciou-se em kef e abandonou o espaço do Império Radch.

  • Tenente Awn Elming, simpática e inteligente tenente Chefe da década Um Esk da nave Justiça de Toren. Ao se negar espionar a tenente Skaiaat, Anaander Mianaai a condena a morte e ordena que um segmento Um Var da Justiça de Toren a mate. Este evento torna-se o estopim para a trajetória de Breq.

  • Tenente Skaiaat Awer, aristocrata e astuciosa tenente da década Sete Issa da nave Justiça de Ente, composta por soldados humanos em vez de ancilares. Ela torna-se amiga da tenente Awn e a acompanha durante a ocupação de Ors.

  • Sacerdotisa de Ikkt, sábia e pacifista líder religiosa e popular da pequena comunidade de Ors em Shis’urna. Não ofereceu nenhuma resistência contra a dominação militar e, depois da anexação, confia na tenente Awn mais do que em qualquer outra oficial radchaai.

  • Anaander Mianaai, Senhora do Império Radch desde o seu nascimento, que partilhou sua consciência em milhares de corpos clonados para governar seu imenso domínio. Revela-se estar em uma guerra secreta consigo mesma há pelo menos mil anos, com duas partes de si divididas a respeito de como manter o Império.

  • Dra. Arilesperas Strigan, fora médica particular na estação Dras Annia e colecionadora de artefatos garseddai raros. Um dia adquiriu a última arma presger produzida para os líderes de Garsedd e, sabendo o que tinha em mãos, abandonou tudo o que tinha e fugiu para Nilt.



Temas


Arte oficial do livro. Artista John Harris.


Justiça Ancilar, como a excelente ficção científica que é, provoca o pensamento de várias formas. Cada vez que o leio, este livro se abre em novas camadas e ramificações interpretativas. A meu ver, é possível distribuir suas propostas temáticas em três grandes grupos: (1) Dominação e Civilização, (2) Consciência e Identidade; (3) Cisão e Revolução. É inviável que eu me aprofunde em todas elas, mais provável que eu sequer compreenda todas. Tentarei registrar aqui, no melhor da minha habilidade, um resumo parcial destes temas.


Dominação e Civilização


Anaander Mianaai, Seivarden Vendaai, Awn Elming e Um Esk.


A religião de Amaat promove três princípios básicos: Justiça, Adequação e Benefício. Nada acontece no universo que não seja proposto de acordo com a vontade de Amaat, e nenhuma ação deve deixar de ser justa, adequada e benéfica para que a ordem do universo se alinhe aos preceitos de Amaat. Sob esta diretriz, o Império Radch funda a sua expansão militar e o seu domínio sobre a humanidade, em prol da civilização.


“Você sabe como funcionam as anexações. Quero dizer, sim, elas funcionam pela pura e inegável força, mas depois disso. Depois das execuções e dos transportes e depois que absolutamente todas as idiotas que acham que podem resistir são eliminadas. Depois que tudo isso acaba, nós encaixamos quem sobrou na sociedade radchaai. Elas formam casas e aceitam clientelas, e depois de uma ou duas gerações se tornam tão radchaai quanto qualquer uma. Em grande parte, isso acontece porque nós seguimos até o topo da hierarquia local, já que quase sempre existe uma, e oferecemos a ela todo tipo de benefícios em troca de um comportamento de cidadãs. Oferecemos contratos de clientela, o que lhes permite oferecer contratos a quem quer que esteja abaixo delas, e num instante toda a configuração local está amarrada à sociedade radchaai com um mínimo de perturbação.”

A civilização Radch é justa. Ela promove a igualdade absoluta entre todos os seus cidadãos. O Império deve prover ao menos o mínimo necessário a todos, de alimentação a vestimentas, oportunidades de trabalho e residência. A civilização é adequada à ordem do universo e todos os que se adequam a ela são beneficiados por isto. Ou pelo menos este é o fundamento das leis impostas por Anaander Mianaai. Esta percepção unificadora e uniformizante esconde em si mesma a divisão étnica e cultural no interior de cada sistema, estação e planeta. O preconceito, a divisão desigual de riquezas e o favorecimento de alguns dos seus cidadãos em detrimento de outros.


“E você não gosta que eu diga isso, mas a verdade é a seguinte: luxo sempre vem às custas dos outros. Uma das muitas vantagens da civilização é que, via de regra, as pessoas não precisam ver isso se não quiserem. Cada um está livre para desfrutar dos benefícios sem perturbar a própria consciência.”

Esta grande civilização possui uma imperatriz, uma líder que tem o poder de determinar todas as suas leis e escolher quais vidas valem mais, dentro e fora de seu domínio. A força militar de Mianaai é extensa e as anexações alimentaram tanto a expansão física do Radch, como a sua própria manutenção gigântica ao longo do tempo. Toda a economia desta civilização dependia fortemente da dominação de novos planetas e sistemas, adquirindo novas riquezas a serem distribuídas entre seus cidadãos, os proeminentes e os emergentes. Quando a Senhora do Radch decide encerrar a sua expansão, ela ao mesmo tempo anuncia a necessidade de mudanças e se adianta para o fim do império tal como era conhecido.


Toda a civilização demanda e produz ordem. Mas toda a ordem esconde em si mesma uma grande medida de caos e desunião. Não é possível apagar desacordos, diferenças culturais e a história de indivíduos e comunidades inteiras para implantar um ideal único de modo perene em uma larga extensão espacial e temporal. A unidade do Radch, assim como a própria unidade de Anaander Mianaai, existe apenas como uma ficção mantida presa por braços armados e pela ignorância voluntária do dissenso. E a sua queda é inevitável.


“Unidade, eu pensei, implica a possibilidade de desunião. Inícios implicam e requerem finais.”



Consciência e Identidade


Justiça de Toren e Um Esk Dezenove. Artista QuarkSparrow.

Toda a linguagem costurada na narrativa de Justiça Ancilar é um debate identitário. Ela explora a possibilidade de uma cultura que se expressa sem definição de gênero, como mais uma maneira em que os radchaai promovem unidade, ordem e civilização. Ela é também um dos veículos que marcam as principais diferenças entre os radchaai e o restante da humanidade. Uma diferença cultural que se volta para um ideal de civilização unificador, que absorve todas as outras identidades das sociedades que domina, os seus idiomas, culturas, hierarquias e religiões. A indiferença entre a separação de masculino e feminino é perfeitamente condizente com todos os ideais do Império Radch, mas é o único ângulo em que a obra aborda estes temas.


A capacidade de expandir sua consciência para vários corpos, se reproduzir por clones e comandar qualquer frota ou nave militar em seu domínio é a tecnologia que transforma a Senhora do Radch no ser humano mais próximo de um deus. A sua constante presença por todo o espaço radchaai e sua longevidade lhe conferem o que há de mais próximo da onipresença, onisciência e onipotência de uma divindade. A sua perspectiva é inevitavelmente imensa e seus planos e projetos estendem-se por séculos. Ao passo que cada corpo seu é capaz de atender a um problema em particular, caso queira, sem prejudicar o seu funcionamento em outras múltiplas tarefas. Sua identidade, assim como sua consciência, abarca uma complexidade inimaginável e multifacetada, ao mesmo tempo única e transformada ao longo de toda a sua extensão temporal e espacial. Não à toa, Mianaai não era capaz de prever e impedir sua cisão, que implica na quebra do próprio Império Radch construído e suportado em sua mente.


A constituição da consciência das naves espaciais, as Justiças, Misericórdias e Espadas, é muito semelhante. Desde que ocorra sua constante manutenção, as naves são virtualmente imortais e extremamente poderosas. Tanto suas embarcações como seus corpos auxiliares. Cada ancilar é incrementado com maior poder físico e mental para servir como o soldado radchaai perfeito. E todos compartilham da mesma consciência, como uma única entidade. Assim como a Mianaai e o Império, as naves dependem do expansionismo militar para continuar existido. Um Esk experimentou a formação da sua identidade independente ao longo dos seus dois mil anos de existência, desde quando descobriu seu gosto pessoal pela música.

“Sem sentimentos, decisões insignificantes tornam-se tentativas excruciantes de comparar infinitas possibilidades de coisas inconsequentes. É simplesmente mais fácil lidar com elas com emoções.”

E toda Inteligência Artificial criada por Mianaai possui sentimentos e emoções, que lhes confere, personalidade, gosto e vontade únicos, escondidos em sua própria mente. Cada nave se importa completamente com os oficiais sob sua guarda e é compelida a construir uma relação forte com seus capitães. Essas características que tornam a IA uma arma leal e poderosa. Elas também permitem à nave que tenha favoritos, que ame profundamente as pessoas com as características que mais admira. Em Justiça Ancilar, o desenvolvimento de emoções e sentimentos não são um acidente de percurso na evolução da IA, e sim uma prerrogativa de funcionamento derivada do aprendizado de que não é viável existir sem eles.


“As presger não se importavam se uma espécie era senciente, consciente ou inteligente. A palavra que usavam, ou o conceito, pelo menos (pelo que eu entendia, as presger não falavam usando palavras), era normalmente traduzida como Significância. E apenas as presger eram Significantes. Todos os outros seres eram, por direito, sua presa, propriedade ou brinquedo. Na maioria das vezes, elas não davam a mínima para humanas, mas algumas delas gostavam de parar naves e destroçá-las por completo, junto com seu conteúdo.”

Todos os encontros dos humanos com entidades alienígenas promovem estranheza e conflito. Em especial aquelas envolvendo os alienígenas presger. Os presger são imensamente poderosos e capazes de desfazer qualquer oponente. Eles apenas refreiam de qualquer impulso destrutivo pela própria vontade, quando conferem eles próprios o título de seres sencientes a outras espécies e lhes oferecem um tratado de não agressão. Ao serem trazidos para exercer este acordo com a comunidade alienígena, a humanidade representada na Senhora do Radch assume uma nova posição que define sua condição de existência consciente e inteligente não apenas pelas suas características internas e humanas, mas também depende da sua contraposição e contato com os seres alienígenas que assinaram o mesmo tratado. A necessidade de acordos diplomáticos e tradutores passa a existir pela primeira vez dentro do império que até então era acostumado a dominar e absorver qualquer oponente. Ou destruí-lo.

“Não, você escapou de algum modo. Eu posso trazer você de volta. Tenho certeza de que posso. – Você pode me matar, quer dizer. Pode destruir meu senso de identidade e substituí-lo por um que você aprove.”

Por fim, o debate entre Breq e Strigan fomenta uma discussão a respeito de quais existências são válidas ou preferíveis, que tipo de consciência vive ou é capaz de escolha, autocompreensão e autodeterminação. Strigan acredita que a capacidade de Breq de voltar-se contra a Senhora do Radch alude a uma consciência humana ainda viva naquele corpo, a despeito das ligações e maquinários que ocuparam as sinapses nervosas com a Inteligência Artificial de Justiça de Toren. Essa presunção se baseia em grande parte em desconhecimento sobre como funcionam as IAs radchaai, mas ela abre espaço para outra questão. É provável que a individuação das personalidades das naves radchaai, especialmente as mais antigas, tenha sido favorecida pela ocupação dos corpos humanos escravizados pelas máquinas. A experiência corpórea humana das IAs com seus auxiliares, unida a capacidade de gestar emoções e sentimentos, e a propensão de cuidar de seus oficiais acima de qualquer coisa, geraram pouco a pouco suas identidades. Suas consciências. E Breq, forçada a existir com as limitações de um único corpo, torna-se cada vez mais única e, aparentemente, humana.





Cisão e Revolução


A Ponte de Nilt.

“Ou a identidade de qualquer um é uma questão de fragmentos unidos pela conveniência ou por uma narrativa útil, que em circunstâncias ordinárias nunca se revela como uma ficção? Ou é realmente apenas uma ficção?"

Este é ponto de encontro entre as duas outras ramificações temáticas. A Cisão e a Revolução são a culminação da tensão extrema que sofrem tanto a consciência individual de personagens como Anaander Mianaai e Justiça de Toren, como também a imensidão ordenada do Império Radch, que pretende unifica o caos e civilizar a humanidade em uma única cultura absorvendo todas as culturas, sociedades e religiões.


“Imagine. Imagine toda a sua vida orientada para a conquista, para aumentar o espaço radchaai. Você vê assassinato e destruição em uma escala inimaginável, mas elas veem a disseminação da civilização, da justiça e da adequação, do benefício para o universo. A morte e a destruição são produtos inevitáveis desse bem supremo.”

Quando Anaander Mianaai percebe o plano dos vinte e cinco líderes garseddai para desafiar sua força imperialista, auxiliados pela tecnologia presger, ela decide erradicar todo o sistema Garsedd. Este genocídio representa o provável momento que gerou a cisão dentro da consciência da Senhora do Radch em pelo menos duas partes. Uma delas é dominada pela convicção de seu poder e pela certeza de sua razão em reagir com tamanha violência, que esconde o medo de enfrentar forças desconhecidas sobre as quais não tem controle ou agência. Este mesmo medo rege a decisão da outra metade, que assume os eventos de Garsedd como um aprendizado de mortalidade e decide firmar o tratado de não agressão com os presger. Uma metade está consciente de que cresceu demais, ela própria e seu território, e precisa encontrar uma forma não militarizada de manejá-lo. A outra metade se recusa a ceder à noção do próprio fim, e passa a trabalhar em segredo de si mesma pela manutenção das suas forças militares. Os fragmentos de Mianaai se mantém unidos apenas pelo fino véu de ignorância de sua própria dissidência. Sua guerra contra si mesma leva ao recrutamento sub-reptício de oficiais militares, gestores civis e as próprias Inteligências Artificiais das naves.


“As pessoas frequentemente acham que teriam tomado a atitude mais nobre, mas quando se encontram de fato numa situação dessas, descobrem que as coisas não são tão simples.”

A tenente Awn Eliming acaba no fogo cruzado entre estas duas partes da Senhora do Radch, e sua morte nas mãos de Justiça de Toren comandada por Mianaai é o estopim para a cisão completa da unidade Um Esk e o restante da IA. Um Esk amava Awn e sua identidade particular desenvolvida no interior de Justiça de Toren volta-se contra Mianaai, sua própria criadora e comandante absoluta. Os sentimentos de amor e o luto que causam o nascimento da independência de Um Esk, que culmina também com a destruição do porta-tropas e todos os seus segmentos auxiliares, exceto um.


“Se vai fazer alguma coisa assim tão louca, guarde para quando isso puder fazer de fato uma diferença.”

As ações de Breq pretendem ferir a Senhora do Radch revelando sua cisão interna para toda a sua consciência. Em última instância, Breq quer para sua maior inimiga o mesmo que ocorreu com ela. E a revolução que leva a quebra do Império Radch ocorre impulsionada por ações bem específicas de várias personagens que dirigem a ida de Breq ao Palácio Omar. E é, ao mesmo tempo, a culminação do inevitável, o fim contido no próprio início. O caos contido na ordem.


“Se é isso o que estás disposta a fazer por alguém que você odeia, o que você faria por alguém que ama?”




Outras Obras

A trilogia do Imério Radch continua com os livros Ancillary Sword (2014) e Ancillary Mercy (2015), ambos ainda não traduzidos. Ann Leckie também escreveu o livro Provenance (2017) e dois contos Night's Slow Poison e She Commands Me and I Obey (2014) que se passam no mesmo universo expandido. Como eu já li essa trilogia uma dezena de vezes e acredito que a série fica cada vez melhor a cada releitura.


A autora publicou recentemente seu primeiro livro de fantasia, The Raven Tower (2019), que ganhei de presente de aniversário este ano. Ele provavelmente aparecerá numa resenha por aqui (obrigada, Vitória!).



Se gostou de Justiça Ancilar, leia também...


Justiça Ancilar figura firme entre as principais obras sobre Inteligência Artificial, saltando à frente neste gênero de Sci-Fi, renovando-o distintamente. Merece estar ao lado dos clássicos e vem para estabelecer novos parâmetros sobre como devemos pensar a consciência das máquinas.

Provavelmente já terás notado, sem ajuda das minhas recomendações abaixo, que apesar da movimentação recente para traduzir obras de Ficção Científica mais atuais, as editoras brasileiras ainda investem muito mais nos livros clássicos do século passado. Talvez pela natureza do próprio gênero, que apela pouco para um público geral, as editoras temam investir em novos títulos. Mas há de fato décadas de produção literária na Ficção Científica que não costumam chegar ao público leitor que não possa ir direto à língua original das obras. Com isto em mente, destaquei as seguintes obras como leituras similares:


Traduzidos:

  • Eu, Robô (Isaac Asimov)

  • Neuromancer (William Gibson)

  • Blade Runner: Androides sonham com ovelhas elétricas? (Philip K. Dick)

  • A Mão Esquerda da Escuridão (Ursula Le Guin)

  • A Guerra do Velho (John Scalzi)

Não Traduzidos:

  • All Systems Red (Martha Wells)

  • The Long Way to a Small, Angry Planet (Becky Chambers)

  • A Memory Called Empire (Arkady Martine)

  • Leviathan Wakes, The Expanse Series (James S. A.)

  • Children of Time (Adrian Tchaikovsky)


Gostou de Justiça Ancilar? O que achas dos seus temas e de sua narrativa? As peculiaridades de escrita foram uma experiência negativa ou contribuíam para a apreciação do livro? Vamos discutir!

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