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Foto do escritorFernanda Borges da Costa

Guerra do Velho

Atualizado: 25 de dez. de 2023

“No meu aniversário de 75 anos fiz duas coisas: Visitei o túmulo da minha esposa e depois entrei para o exército.”

[Última Alteração em 11/02/2020 às 12h45]


Guerra do Velho é o primeiro livro do autor John Scalzi lançado em dezembro de 2005 pela editora Tor Books, e nomeado pela Premiação Hugo como melhor livro de 2006. A Editora Aleph trouxe a obra para o Brasil, traduzida por Petê Rissati em 2016. Esse livro introduz a série épico-espacial militar na qual o planeta Terra deu início à sua expansão colonial através dos esforços da União Colonial. A humanidade desenvolve (e rouba) tecnologia suficiente para explorar novos planetas habitáveis e, durante este processo, entra em guerra contra raças alienígenas. Para integrar as Forças Coloniais de Defesa há apenas um requisito, o recruta deve ter idade mínima de 75 anos.


Este livro é uma excelente obra de ficção científica que introduz tecnologias novas e interessantes, e constrói ao redor delas toda uma nova experiência para as personagens e para o leitor. John Scalzi busca inspiração em “Starship Troopers” (1959) de Robert A. Heinlein, reconectando a perspectiva americana do pós-guerra em duas eras bem distintas. Apesar das referências quase diretas à obra de Heinlein, Scalzi não deixa à desejar em sua capacidade de narrar drama em poucas palavras. A voz do protagonista John Perry é peculiar, engraçada e ao mesmo tempo profunda. Scalzi introduz novas tecnologias mas não escreve o que chamamos de “Hard Sci-Fi”, ou seja, ele não depende de um conhecimento complexo de ciência e tecnologia para que se tenha uma boa compreensão da história. Nós podemos captar rapidamente as regras internas a partir da qual a tecnologia e a sociedade funcionam, elas são bem elaboradas e nos permitem grande imersão na história. Isso faz de Guerra do Velho um excelente livro para todos os leitores do gênero, dos mais novos aos mais experientes.


Aqui encontrarás um breve resumo (sem spoilers) de Guerra do Velho, um resumo expandido (com spoilers), uma lista de personagens principais e um pouco da minha interpretação sobre os seus temas principais. Há também uma lista (com uma sugestão de ordem de leitura) das outras obras da série e outros lançamentos do autor, além da recomendação de alguns outros livros similares a este.



Breve Resumo [Sem Spoilers]


John Perry, um escritor de publicidade aposentado, fez duas coisas em seu aniversário de 75 anos. Primeiro, visitou o túmulo da esposa Katherine Rebecca Perry, falecida oito anos antes. Depois, alistou-se nas Forças Coloniais de Defesa.


Há apenas duas formas de alguém na Terra viajar pelo universo: como colono ou como recruta. Os colonos são selecionados a partir de países de maior concentração populacional, a maioria vindos do hemisfério sul recentemente atingidos pela guerra contra o hemisfério norte. Já os recrutas são voluntários acima de 75 anos de idade que se afiliarão às Forças Coloniais de Defesa (FCD) pela proteção dos migrantes colonos. Conforme as Leis de Quarentena, ninguém que resida na Terra pode saber a respeito ou ter contato com alguém que saiba do que se passa nas colônias ou na guerra; os colonos não têm contato com o planeta e os recrutas nunca mais retornam.

Toda esta empreitada é feita pela União Colonial (UC), a única organização com a tecnologia para saltar pelo universo, que não opera na Terra e não responde a nenhum dos Estados-Nação. Ninguém sabe como, mas todos têm certeza de que a UC e a FCD conhecem algum procedimento para reverter o envelhecimento. De que outra forma um batalhão de idosos lhes serviria?


Ansioso por uma nova vida, o americano John Perry tomou o voo até o Pé-de-Feijão em Nairóbi que o levaria para a Estação Colonial. Não há outra forma de viagem espacial, exceto aquelas que a União Colonial permite para colonização e alistamento.


“Sabe, esse Pé-de-feijão não está aqui porque é a maneira mais fácil de levar pessoas até a Estação Colonial. Está aqui porque é uma das mais difíceis... de fato, é a maneira mais cara, mais tecnologicamente complexa e mais politicamente intimidadora de se fazer isso. Sua simples presença é um lembrete de que a UC está literalmente anos-luz à frente do que qualquer ser humano possa fazer aqui.”

O Pé-de-Feijão era como um grande elevador no formato de uma rosquinha, com o cabo de sustentação no centro, que viajava da superfície da Terra numa linha reta até a Estação na órbita geoestacionária. Durante esta viagem ele dá seu último adeus à Terra e se surpreende com quão mais fácil foi se desvencilhar emocionalmente da sua vida passada depois de ter se preparado para o recrutamento desde um ano antes.


“Eu preferi me desculpar por algo com que realmente não me importava e deixar alguém na Terra me desejando o bem a ser teimoso e ter alguém esperando que algum alienígena chupasse meu cérebro de canudinho. Uma espécie de seguro contra carma.”

Logo após chegar na Estação Colonial, Perry e seus companheiros de viagem, Jesse Gonzales e Harry Wilson, foram arrebanhados imediatamente para embarcar na Henry Hudson, a Nave das Forças Coloniais de Defesa (NFCD) que os levariam dali para o seu treinamento militar. Lá se juntaram a Thomas, Maggie, Susan e Alan, formando o grupo autonomeado “Velharias” enquanto partiam da área gravitacional da Terra até o ponto apropriado para o salto espacial para fora do sistema solar, diretamente para o desconhecido.


NFCD Henry Hudson. Artista Min Nguen.



Resumo Expandido [Com Spoilers]


Há mais de um século a humanidade domina a tecnologia das viagens espaciais e coloniza outros planetas. Apesar disso, ninguém no planeta Terra compreende como as tecnologias da União Colonial funcionam. E o mistério de como as Forças Coloniais de Defesa treinam seus recrutas idosos está para ser revelado a John Perry e seus companheiros durante sua viagem na Henry Hudson até o ponto apropriado para o salto espacial. A UC possui naves capazes de executar saltos com a tecnologia chamada SkipDrive, uma forma de transporte acima da velocidade da luz que produz um buraco no espaço e salta por ele para outro universo. Sabe-se pouco sobre como esta tecnologia funciona, exceto por duas regras básicas: o objeto que salta não é capaz de fazê-lo se estiver próximo de algum centro gravitacional, e o objeto que salta não é capaz de saltar muito longe.


Depois de dois dias de viagem, repleto de refeições magníficas e avaliações físico-mentais, John Perry é levado mais uma vez ao consultório do dr. Russell. Quando sai de lá, John Perry não é mais o mesmo.


“Seu corpo é velho, sr. Perry. É velho e não vai funcionar por muito mais tempo. Não há por que tentar salvá-lo ou atualizá-lo. Não é uma coisa que se valoriza quando envelhece ou tem partes substituíveis que o mantém rodando como novo. Tudo o que o corpo humano faz quando fica mais velho é envelhecer. Então, vamos nos livrar dele. Vamos nos livrar dele inteiro. A única parte que vamos salvar é a sua que não se degenerou... sua mente, sua consciência, sua noção de “eu”.”

A consciência de Perry é transportada para um outro corpo mais jovens, geneticamente construído a partir de seu DNA, mas diferente, com musculaturas melhoradas, pele verde e olhos amarelados. Desenvolvido com super força e agilidade aumentados com nanotecnologia, além de maior capacidade mental, sangue artificial e uma interface neural instalada em seu cérebro chamada BrainPal, um tipo de computador auxiliar que lhe permite, entre outras coisas, se comunicar mentalmente com seus companheiros.


Capa da primeira edição americana. Artista Donato Giancola.


Depois de mais uma semana acostumando-se aos estímulos de seus corpos novos, os recrutas agora jovens e cheios de energia chegam em Beta Pyxis III. Lá passam os dias sob o duro comando e ensinamentos de seu instrutor militar, o Sargento Ruiz. A busca por planetas habitáveis, que são raros e escassos, colocou a humanidade em disputa contra várias outros povos alienígenas que dependem de meios similares de sobrevivência e sustento.


Uniforme das Forças Especiais. Artista Charles Lin.


Essas disputas são, na maioria das vezes, sangrentas e mortais. A expectativa de vida de um soldado da FCD é baixa. A estatística é a de que em dois anos, cerca de 400 soldados em mil estarão mortos e em dez, apenas um quarto dos recrutas de uma geração estarão vivos para aposentar-se dos serviços militares. Por isso, o Sargento Ruiz se torna um professor duro, que despreza todos os recrutas. Até que descobre John Perry, que foi o criador do slogan publicitário que lhe inspirou por toda a vida e virou seu mantra pessoal "Às vezes, você só precisa botar o pé na estrada". Durante o treinamento, a esperteza de Perry e a sua proximidade inusitada com o Sargento Ruiz lhe conferem como punição a posição de líder de pelotão. O treinamento segue sem maiores incidentes e lá Perry já se prova um soldado estrategicamente criativo.


Quando os recrutas se formam, são espalhados em unidades militares pré-existentes com diferentes missões. Perry, junto com Alan Rosenthal, é transferido para a Nave das Forças Coloniais de Defesa chamada Modesto. Logo enfrenta sua primeira batalha real contra os alienígenas Consu, uma raça mais avançada, extremamente religiosa cujas razões de lutar não parecem compreensíveis para as tropas humanas a ponto de parecer um mero esporte precedido de ritos arraigados. Durante esta batalha, Perry descobre uma estratégia que permite à FCD uma vitória rápida contra os Consu, e isto lhe rende uma condecoração e lhe dá certo destaque no exército dali em diante.


A Batalha contra os Consu. Artista cyberrebyc.


Mas sua experiência no exército é desoladora e cercada de mortes de aliados e inimigos. Depois de uma série de encontros e batalhas contra alienígenas como os Rraey (de constituição similar a pássaros grandes e gosto pela carne humana) e os Whaidian (enormes formas parecidas com uma mistura entre ursos e esquilos), Perry se percebe como uma pessoa diferente, e não apenas fisicamente. Talvez sequer seja mais um ser humano. Exaurido pelos vários combates, ele tem o seu momento de maior hesitação durante a luta injusta contra os Covandu, uma raça muito similar à humana exceto por ter no máximo uma polegada de altura.


Ataque contra os Covandu. Artista Vincent Chong.


John Perry, agora um veteranos de guerra, viaja com a nave Modesto até Coral. Lá se juntará a um ataque com outras naves em um esforço militar para retomar o planeta. Coral é um território especialmente importante, com reservas minerais abundantes e uma próspera colônia humana que está sob ataque dos Rraey. Esperava-se uma dura batalha, porém com vitória para a FCD, que possui tecnologia mais avançada que os Rraey e formula com um ataque surpresa imediatamente após as suas naves saltarem para o sistema de Coral. Porém, os Rraey conseguem o que se supunha impossível: eles preveem a localização onde das NFCD saltarão próximo ao planeta e as bombardeiam antes que possam reagir. Graças a uma estratégia de Perry, o pequeno transporte de seu pelotão é salvo do primeiro bombardeiro e cai no planeta. Mas no final, somente Perry sobrevive e já quase morto é resgatado por Jane Sagan e um esquadrão da Brigada Fantasma.


Jane é imediatamente familiar para Perry, lembrando-o de sua falecida esposa Kathy quando ela era jovem. Depois de se recuperar dos danos da batalha, Perry vai em busca de Jane. É dessa forma que descobre que os membros das as Brigadas Fantasma são formadas por soldados de constituição mais avançada, criados com base no DNA humano dos recrutas que morreram antes de chegarem à fase de transferência de mentes para um novo corpo. Apesar de ser proibido, Jane fica curiosa sobre o passado da sua doadora de DNA e se aproxima de John Perry.


Ataque a Coral. Segunda capa da edição americana. Artista John Harris.


Graças a proximidade com Jane e sua participação na última vitória da FCD contra os Consu e na primeira batalha de Coral, o cabo Perry é condecorado como herói e trazido para executar uma missão nas Forças Especiais na nave Sparrowhawk sob o comandante Crick, a nave em que está Jane Sagan e é composta por membros da Brigada Fantasma. Esta nova missão implica uma participação importante numa nova estratégia contra os Rraey para retomar Coral.



Personagens Principais

  • John Perry, escritor de publicidade aposentado e viúvo, se voluntaria para as Forças Coloniais de Defesa e transforma-se num super soldado. Participou da primeira e segunda batalhas por Coral.

  • Os “Velharias”, grupo formado por John Perry e seus amigos de recrutamento, Jesse Gonzales, Harry Wilson, Thomas Jane, Maggie, Susan Reardon e Alan Rosenthal reunidos durante a viagem na nave Henry Hudson.

  • Sargento Ruiz, mestre e instrutor dos recrutas em Beta Pyxis III, um veterano que é responsável por injetar nos soldados um senso de perigo e o treino com armas mortais o mais rápido possível.

  • Jane Sagan, membro da Brigada Fantasma e líder de esquadrão, foi criada a partir da base de DNA da esposa falecida de John Perry, Kathy.

  • Comandante Crick, líder da nave Sparrowhawk que pertence às Forças Especiais e parte das Brigadas Fantasma.



Temas


“Seu corpo e seus sistemas biológicos são patenteados pela Colonial Genetics e não pode ser transmitidos sem permissão.”

Guerra do Velho é uma obra de Ficção Científica com foco na experiência militar intergaláctica. Apesar de ser uma obra relativamente curta e de leitura rápida, há nela espaço para diversos temas profundos e controversos. A narrativa em primeira pessoa segue John Perry e, apesar de não se valer de longos trechos de introspecção, revolve pelas nuances sobre o que é ser humano em seus vários aspectos. Perry e os demais soldados da FCD passa por diversas transformações, a começar pelo despatriamento e sua morte legal na Terra, até a transferência de corpos, que desfaz suas vidas terrestres para sempre e os leva inclusive à perda de propriedade do seu DNA e a perda de autonomia reprodutiva. Os temas de Guerra do Velho variam desde a questão ética na prolongação da vida humana e a significância da mortalidade, até às possibilidades e variantes morais de guerras imperialistas intergalácticas. As transformações físicas, as várias batalhas sangrentas e o enfrentamento com a morte de amigos e aliados unem-se aos efeitos do abandono total da vida pregressa para remodelar completamente a noção de identidade da personagem. A ponto de deixar-lhes aberta a questão de o que é ser humano e de se ainda pertencem à humanidade.


Dividirei essas questões nos três temas que vejo como centrais para este livro, sem excluir outras possibilidades que possas perceber e comentar.


Os méritos da idade avançada


A Transferência de Mentes. Artista Craig Maher.


Há vários motivos para as Forças Coloniais de Defesa darem preferência para o recrutamento de pessoas de idade avançada provenientes da Terra. Estas são pessoas que já viveram uma vida inteira de certa forma e não se veem prontas para morrer ainda, apesar de terem feito às pazes com o fim daquela vida em particular. O contrato assinado por cada recruta funciona como um teste que seleciona aqueles dentro das variantes de personalidade e experiências de vida que estejam mais propícias para passar tanto pelas transformações necessárias como pelas provações do exército.


“As pessoas se alistam porque não estão prontas para morrer e não querem envelhecer. Alistam-se porque a vida na Terra não é interessante depois de uma certa idade. Ou se alistam para ver um lugar novo antes de morrer. É por isso que me alistei, sabe? Não estou ingressando para lugar ou ser jovem de novo. Apenas quero ver como é estar em outro lugar.”

Durante uma as lições do Sargento-mor Antonio Ruiz, quando perguntado sobre porque os recrutas e soldados deveriam se importar com a proteção dos colonos humanos enquanto eles próprios já não podiam se dizer parte da humanidade, o Sargento-mor responde-lhes, entre outras coisas, isto:


“Mas, por fim, vocês devem se importar porque são velhos o bastante pra saber que devem. Esse é um dos motivos pelos quais as FCD selecionam idosos para se tornarem soldados. Não é porque vocês todos estão aposentados e são um peso para a economia. É também porque vocês viveram o bastante para saber que há mais na vida do que a própria vida. A maioria de vocês criou famílias, teve filhos, netos, e entende o valor de fazer algo além de seus objetivos egoístas. Mesmo se nunca se tornarem colonos, ainda vão reconhecer que as colônias humanas são boas para a raça humana, algo pelo qual vale a pena lutar. É difícil enfiar esse conceito na cabeça de alguém com 19 anos. Mas vocês são experientes. Neste universo, o que conta é a experiência.”

As FCD querem de seus soldados uma certa perspectiva sobre o valor da vida que se adquire com o passar do tempo e a experiência de envelhecer. Essas duas perspectivas implicam a compreensão de uma certa forma de sabedoria a respeito da vida e da existência humana que se adquire penas depois de tê-la vivido. Dado o acesso à tecnologia de criação de super-soldados, a FCD poderia recrutar qualquer outro tipo de pessoa que estivesse disposta à transformação e demonstrasse propensões para a batalha. Mas são as pessoas que passaram pelo processo de envelhecimento e pelas experiências de toda uma vida que estão mais propensas a valorizar certas coisas, como a recuperação das habilidades da juventude e a capacidade de dispor de toda essa energia e potência por uma causa maior que a si mesmo.


Claro, há exemplos em contrário na própria narrativa que, a meu ver, servem mais como um contraste que prova a teoria desta sabedoria da idade avançada. São personagens como o racista e militarista Leon Deak, companheiro de viagem de John Perry durante o recrutamento, ou a empolgação estúpida de Watson, primeiro soldado cuja morte Perry presencia. Eles não possuem algumas das características de compreensão empática e temperança que se espera de sua idade avançada, e inclusive por isso, não parecem aptos o bastante para as provações que os soldados da FCD enfrentam.


Nossa sociedade hoje em grande parte vê com repulsa a experiência de envelhecer. Nela, os valores se concentram no mérito de acordo com a funcionalidade para o mercado de trabalho, e excluem de suas preocupações com facilidade aqueles que não podem mais produzir e trabalhar. Enquanto os constantes avanços tecnológicos e as rápidas mudanças sociais e culturais requerem grande adaptabilidade, e se desfazem rapidamente de experiências acumuladas, mudando as regras do jogo de forma que pouco valor parece restar na sabedoria dos mais velhos.


Mas a capacidade de dar aos membros idosos da população humana um novo corpo e uma nova vida com um propósito em prol da humanidade, sem tirar-lhe as experiências de sua vida anterior, retoma na era da tecnologia e informação uma perspectiva sobre a velhice que se havia perdido na nossa geração. A ficção em Guerra do Velho demonstra em sua narrativa os valores inerentes no acúmulo das experiências de vida, que ressoa com um grupo etário que tem sido frequentemente esquecido e calado na literatura moderna. Dando-lhes novos corpos, a ficção demonstra como a capacidade de ação e adaptação é muitas vezes uma barreira física ou um condicionamento mental, que não devem apagar os méritos da sabedoria adquirira por aqueles que passaram por todas as etapas de uma vida humana.


Amigos, não chorem
Caio uma estrela cadente
Na próxima vida


Os méritos da guerra e do imperialismo


Mais uma batalha. Artista Nin-Nguen.


John Perry e sua esposa eram contra a Guerra Subcontinental. Desprezavam a ideia de militarização e uso de força militar contra outros países pelos Estados Unidos. Contudo, estas mesmas personagens não se opõem ao recrutamento para as Forças Coloniais de Defesa. Aqui está não uma contradição, mas uma variação de perspectivas a respeito de quando e como guerras imperialistas estariam justificadas ou não.


“Era meu aniversário de 60 anos e eu estava deprimido por estar ficando velho. Então, ela sugeriu que nos alistássemos quando chegasse a hora. Fiquei um pouco surpreso. Sempre fomos antimilitares. Protestamos contra a Guerra Subcontinental, sabe, quando isso não era muito bem-visto. (...) Ela disse que não era contra a guerra ou os militares de forma geral, apenas contra aquela guerra e nossos militares. Disse que as pessoas tinham o direito de se defender e que provavelmente havia um universo terrível lá no espaço. E disse que, além daqueles motivos nobres, também seríamos jovens de novo.”

Nesta guerra espacial, a humanidade é colocada entre as opções de lutar ou morrer. Há no fundo dois motivos implícitos nos modos de operação das Forças Coloniais de Defesa. Se no universo existem poucos planetas habitáveis tanto para os seres humanos como para outras raças alienígenas, os poucos planetas que existem serão procurados e dominados pelas raças mais fortes. A Terra é um destes planetas e se a humanidade se confinar a ela, sem participar da corrida colonial e sem buscar avanços tecnológicos cada vez maiores, mais cedo ou mais tarde ela desaparecerá.


Na Henry Hudson os recrutas aprenderam os três mandamentos das Forças Coloniais de Defesa: (1) proteger as colônias humanas existentes e defende-las de ataques e invasões, (2) localizar novos planetas adequados para colonização e controla-los contra predação, colonização e invasão de raças concorrentes, e (3) preparar os planetas com população nativa para a colonização humana. Todos os soldados devem obedecer aos três mandamentos e a todas as suas ordens na cadeia de comando. Esta é a organização possível para a sobrevivência da humanidade.


Esta é uma guerra de sobrevivência, um imperialismo necessário para a preservação da humanidade e sua prosperidade num universo hostil que lhe tomaria seu planeta natal se pudesse. Ao traçar esta diferença fundamental entre “nós” e “eles”, sendo “nós” toda a humanidade e sendo “eles” todas as raças alienígenas que ameaçam a nossa existência, a guerra passa a ser não apenas justa como necessária. Essa perspectiva é reforçada pela aparente incapacidade de diplomacia e acordo com outros alienígenas sencientes, como na ocasião da fabulosa morte do Soldado Senador Embaixador Secretário Bender quando tentou negociar com os whaidianos.


“Quantas estrelas há nesta galáxia? Uns cem bilhões? A maioria delas tem um sistema de planetas de algum topo. O terreno é praticamente infinito. Não, acho que a questão real aqui pode ser que o motivo pelo qual usamos a força para lidar com outros espécimes alienígenas inteligentes é que a força é o que está mais à mão. É rápida, direta e, comparada às complexidades da diplomacia, simples. Você conquista um pedaço de terra ou não. Ao contrário da diplomacia, que é um esforço intelectualmente muito mais difícil.”

Apesar de sua morte espetacular e de ter sua posição abertamente hostilizada no exército como sendo simplista e inexperiente, algo ecoa nas palavras de Bender às vésperas de seu batalhão executar nada mais do que um ataque terrorista aos whaidianos. Uma dúvida é plantada, que deveria ter estado lá desde o início: quem determina a narrativa com que os soldados são apresentados ao universo tem o domínio exclusivo de manipular sua força para um lado ou para o outro. E os soldados em batalha não podem se dar ao luxo de duvidar de seus comandos. Cumprir as ordens é uma das poucas vias pelas quais é possível sobreviver e manter vivos os seus companheiros de batalha. Assim disse a cabo Luisa Viveros, dois meses antes de encontrar sua morte em batalha:


“Se Bender estivesse realmente interessado na paz, e não em seu ego, ele teria feito o que eu estou fazendo, e o que você deveria fazer, Perry – ela comentou. – Seguir ordens. Sobreviver. Terminar nosso prazo de serviço de infantaria. Ingressar no treinamento de oficiais e fazer carreira. Tornar-se as pessoas que estão dando ordens, não apenas segui-las. É assim que faremos paz quando pudermos. É assim que consigo viver “apenas seguindo ordens”. Porque eu sei que, um dia, vou fazer essas ordens mudarem.”

Se a guerra é a violência com que se dividem os inimigos, ela é também a força que unifica os amigos. O trauma e o risco da morte constante criam alianças e laços mais fortes e poderosos do que amizades de uma vida. Os soldados lutam uns pelos outros, pelo companheirismo daqueles que passaram pelas mesmas dificuldades e pelo luto dos que se foram em batalha. A força de um exército muitas vezes depende destes laços, forjados e fortalecidos nas dificuldades extremas. É o mesmo tipo de aliança que se presume entre os colonos em planetas distantes, que precisam unir-se para sobreviver a todo custo. O imperialismo e a guerra são, neste sentido, uma forma de reafirmação dos valores da humanidade, de sua aliança consigo mesma na forma de redes de confiança e laços de familiaridade e lealdade uns com os outros.


Laços que ainda podem ser manipulados. E logo a carnificina da guerra mostra seu custo na mente. Em John Perry este momento veio com a batalha por Cova Banda, um planeta antes habitado por uma colônia humana dizimada pro um vírus e que depois disso foi tomada pelos minúsculos covandus. Quando as FCD desenvolveram uma vacina contra este vírus, decidiram então que era o momento de retomá-lo. A convivência pacífica com os covandus foi descartada, e o pelotão de Perry teve que batalhar esmagando com as botas os pequeninos inimigos.

“Meu Deus, Alan – eu falei –, eu passei três horas pisando em seres inteligentes como se eles fossem baratas de merda, isso é o que há de errado comigo. Estou sapateando em pessoas até elas morrerem. Isso – eu estendi o braço – é simplesmente ridículo, Alan. Essas pessoas têm uma polegada de altura. É como Gulliver espancando os liliputianos. (...) Isso tudo está bagunçando minha noção de escala. Está bagunçando minha noção de mim. Não me sinto mais humano, Alan.”

A vida neste universo e as batalhas por esta vida se provam impossíveis de definir em um espectro maniqueísta entre a paz e a guerra.



Transhumanismo e Pós-Humanismo


Naves de batalha. Artista John Harris.


Os recrutas das Forças Coloniais de Defesa passam por uma semana inteira de treinamentos voltados para que acreditem, com todas as partes de seus corpos, que não são mais humanos – ou não são seres humanos tais como aqueles que costumavam ser.


“Fiz vocês correrem vinte quilômetros em uma hora porque vocês podem. Mesmo o mais lento de vocês terminou a corrida dois minutos antes do tempo. Isso significa que, sem treinamento, sem mesmo um pingo de esforço real, cada um de vocês, malditos, pode manter o ritmo de medalhistas de ouro olímpico lá da Terra. E sabem por que isso? Sabem? É porque nenhum dos senhores é mais um ser humano. São melhores. Só não sabem disso ainda. Merda, os senhores passaram uma semana trepando pelas paredes de uma espaçonave como brinquedinhos de corda e provavelmente não entendem do que são capazes. Bem, senhoras e senhores, isso vai mudar. A primeira semana de seu treinamento será toda para fazê-los acreditar nisso. E os senhores vão acreditar. Não terão escolha.”

Cada soldado passa por uma transferência de mentes para corpos especializados em batalha. Super soldados, com peles verdes à base de clorofila com maior absorção de energia, sangue com quatro vezes a capacidade de transporte de oxigênio e imune a maioria das toxinas conhecidas, olhos com visão noturna e abrangência superior de percepção em geral, aperfeiçoamento de todos os sentidos corporais e força muscular aumentada, além do acréscimo da interface adaptável auxiliar que é o BrainPal, basicamente um computador instalado no próprio cérebro.


Todas essas transformações são acompanhadas de um senso de deslocamento imenso com o abandono da vida anterior, do planeta Terra e de todas as circunstâncias que os ligavam a uma vida humana comum. A própria aparência de seus corpos, para além da pele verde e olhos amarelados, é uma versão mais bela e forte do que qualquer um dos voluntários poderia ter sido em sua vida passada. Ao mesmo tempo, perderam a capacidade de procriar deixaram de ser donos de seu próprio material genético e de seu corpo, que agora pertencem às FCD.


“as FCD não mantenham uma posição oficial quanto a ramificações teológicas ou psicológicas da transferência de consciência de um corpo para outro”

Essa afirmação de certa forma omite a filosofia e mentalidade por trás das necessidades alegadas pela União Colonial para o modo de funcionamento das Forças Coloniais de Defesa. E assim o livro Guerra do Velho toca nos temas do Transhumanismo e Pós-Humanismo.


O Transhumanismo é um movimento filosófico que propõe a melhoria da condição humana a partir do uso da ciência e da tecnologia, como a biotecnologia, nanotecnologia e neurotecnologia, para extrapolar as limitações biológicas da condição física, intelectual e psicológica da humanidade. Suas várias vertentes possuem em comum a percepção de que a evolução humana não precisa ou mesmo não deve se limitar aos mecanismos naturais de desenvolvimento da espécie. Ou melhor, o uso do intelecto humano e seu domínio sobre a ciência e a tecnologia fazem deles mesmos parte do que seria o desenvolvimento natural da humanidade. Tanto a criação de seres não-humanos ou semi-humanos de inteligência artificial, como os desenvolvimento de tecnologias cada vez mais recentes para a extensão da vida humana ou de seu conforto, residem neste ideal. Há muito o que se discutir a respeito, mas o Transhumanismo vê uma conexão lógica entre a manipulação genética para gerar seres de capacidades superiores e a invenção os óculos e aparelhos auditivos, por exemplo.


Alguns teóricos percebem o Transhumanismo como uma vertente do movimento Pós-Humanista, que tem um escopo mais abrangente. O Pós-Humanismo pode significar desde uma posição Antihumanista, crítica às compreensões tradicionais sobre a humanidade, até mesmo desembocar no ideal de um futuro pós-humano em que a humanidade seja voluntaria ou circunstancialmente extinta. Mas as formas mais comuns de Pós-Humanismo tendem a se dividir em duas categorias: (1) a primeira desfaz a ênfase que se dá na construção do conhecimento sobre as perspectivas individuais, priorizando as suas percepções a partir principalmente das suas práticas sociais em vez de centralizar-se na individualidade do sujeito; (2) enquanto a segunda é crítica à própria concepção antropocêntrica de inteligência e cultura, contra a ênfase excessiva nas existências subjetivas e experiências intersubjetivas sobre apenas os seres humanos excluindo outras espécies existentes e possíveis.


Guerra do Velho é uma narrativa que perpassa todas estas questões, de uma forma ou de outra. Seja pelo contraste entre seus soldados real-natos, que viveram até a velhice na sociedade humana, e aqueles formados para as Forças Especiais, cuja existência não conhece nada além da guerra. Seja pela própria guerra intergaláctica contra outros seres sencientes, que desafiam todos os parâmetros de normalidade dos soldados em batalha, junto com os valores e moralidades que construíram ao longo de suas vidas.


Com uma profundidade que à primeira vista pode ser subestimada, esta obra levanta a questão de, afinal, o que é ser humano? Enquanto a pergunta retórica permanece em aberto, John Perry vive uma alternativa de resposta. Sua humanidade vai existir enquanto mantiver a capacidade de se relacionar com outros como ele, e vai resistir enquanto alimentar seu amor por Kathy, que o guia como um farol na escuridão do universo, mantendo pelo menos um ponto de luz como referência do que é ser humano.



Outras Obras


A série originada a partir do Guerra do Velho possui seis livros, dois contos e um livreto. É possível ler as obras a partir da sua ordem de lançamento, desconsiderando os contos e o livreto, mas para acompanhar melhor a cronologia interna dos eventos narrativos e detalhes relevantes para o final da saga, recomendo ler a série na seguinte ordem depois de Guerra do Velho: comece pelo conto Questions for a Soldier (2005) antes de ir para o segundo livro As Brigadas Fantasma (de 2006, com tradução brasileira lançada em 2017), seguem-se então o livreto The Sagan Diary (2007) e o conto After the Coup (2008) antes de retornar para o livro A Última Colônia (de 2007, com tradução brasileira lançada em 2019). Infelizmente, nem todas as obras estão traduzidas. Mas a editora Aleph parece disposta a dar continuidade às traduções nos próximos anos. Os livros seguintes são: Zoe's Tale (2008), The Human Division (2013) e The End of All Things (2015).


John Scalzi é um autor prolífico e possui vários outras obras, incluindo as séries The Android’s Dream com dois livros (2006, 2009), Lock In com dois livros e um livreto (2014, 2018), sendo o primeiro deles traduzido como Encarcerados, lançado pela editora Aleph em 2018, e The Interdependency com dois livros e um conto até o momento (2017, 2018, 2019), e o terceiro livro chamado The Last Emperox, a ser lançado este ano. Recomendo muito o seu romances independente, em especial o premiado Redshirts (2012).



Se gostou de Guerra do Velho, leia também...


John Scalzi foi fortemente influenciado pelos livros de Robert A. Heinlein na escrita de Guerra do Velho e de sua série. Traz o seu tom atualizando-o para de modo irreverente para uma audiência moderna. Com sua inspiração enraizada em um dos grandes autores da Ficção Científica, a Guerra do Velho compõe um conjunto de obras recentes que estabelecem os parâmetros do seu gênero para o novo século, de onde retiro as seguintes sugestões de leitura similares:


Traduzidos:

  • Tropas Estelares (Robert A. Heinlein)

  • Um Estranho Numa Terra Estranha (Robert A. Heinlein)

  • Justiça Ancilar (Ann Leckie)

  • Fundação (Isaac Asimov)

  • Fúria Vermelha (Pierce Brown)

Não Traduzidos:

  • The Forever War (Joe Haldeman)

  • We are Legion (We are Bob) (Dennis E. Taylor)

  • A Memory Called Empire (Arkady Martine)

  • Leviathan Wakes, The Expanse Series (James S. A.)

  • Children of Time (Adrian Tchaikovsky)


Gostou de Guerra do Velho? O que achas dos seus temas e de sua narrativa? Quais outras questões típicas da Ficção Científica a obra poderia propor? Vamos discutir!

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