"Não, Dany, não! NÃO!!”
[Contém Spoilers]
Game of Thrones é a maior série de fantasia que arrasou nossos corações nos últimos tempos.
Arrasou mesmo, literalmente.
Assistir às últimas temporadas desta série de TV foi uma tortura longa e dolorosa. O seu término causou em mim o pareamento improvável de dois sentimentos: a sensação de ter sido duramente espancada e o doce gosto de liberdade. Sim, liberdade! Não precisarei mais acompanhar este longo e lento desastre enquanto assisto horrorizada, incapaz de desviar os olhos ou de impedir a ruína iminente. E tamanha decepção só pôde existir por conta do igualmente monstruoso potencial desperdiçado na série.
Quando Daenerys Targaryen emergiu do túmulo de fogo com seus três dragões, notei ali um momento histórico. Da primeira temporada em diante, a magia que retornava a Westeros espalhou-se também para o imaginário da audiência numa escala extraordinária. Iniciou-se uma nova era, em que a combinação explosiva da fantasia com o drama político tornava este gênero – até então considerado apenas de nicho – acessível e interessante para o público em geral. E eu, claro, fui do sofá à livraria atrás de todos os volumes já lançados de As Crônicas de Gelo e Fogo. Até escrevi um artigo a respeito de um certo sacrifício.
Se conseguiste ler até aqui, suponho que ou concordes ao menos em parte com minha perspectiva. Ou discordas dela, mas decidiste conceder-me a chance de explicar melhor o que quero dizer. Segundo o Rotten Tomatoes deves estar entre um e outro numa proporção aproximada de 70/30.
A meu ver, a série se provou tão difícil de domar quanto os dragões de Daenerys. A temporada entregue por David Benioff e D. B. Weiss foi insatisfatória diante das expectativas criadas. Expectativas que foram propriamente alimentadas pela série. Não sei se foi assim para ti; mas para mim, assistir aos últimos seis episódios me fez sentir como se eu devesse ter morrido pelo menos cinco vezes, como no caso de todo mundo que lutou no pátio de Winterfell e sobreviveu miraculosamente.
Eu também sobrevivi, por isso não preciso reduzir nesta postagem tudo o que eu gostaria de falar sobre Game of Thrones. Há várias coisas belas e boas pelas quais a série também deveria ser lembrada. E todo o investimento de tempo (de minha parte) e de dinheiro (da parte da HBO) merece pelo menos mais atenção e comentários do que serei capaz de fazer em uma única postagem. Por agora, reuni abaixo três argumentos para explicar minha perspectiva sobre a oitava temporada, sem pretensões de encerrar o debate aqui.
1. Promessas quebradas e profecias vazias
Uma série fantástica como Game of Thrones pode apelar para magia e descrever uma realidade interna muito diferente da nossa. Mas uma vez construído, este mundo possui regras que a história promete seguir. A quebra destas regras - destas promessas - sem uma boa justificação prejudica a apreciação da própria narrativa.
Poucas coisas representam melhor tais promessas do que as profecias nas histórias fantásticas. E nada demonstra mais a incapacidade da oitava temporada de respeitar suas próprias regras do que as suas profecias descartadas. As profecias foram levadas bastante a sério pela primeira temporada. No primeiro episódio Ned Stark percebe o mal presságio representado na loba gigante morta pelos chifres de um grande veado, que também havia morrido na luta. A loba e o veado, símbolos das Casas Stark e Baratheon, representam a morte dos dois amigos, senhores de suas casas, e o início da Guerra dos Cinco Reis. E assim o augúrio se cumpre.
Destaco aqui três das principais profecias completamente esvaziadas nesta temporada.
Cersei quando menina recebeu uma profecia da vidente Meggy. Ela previu o seu casamento com um rei e previu a vinda uma rainha mais nova e mais bela que lhe roubaria tudo. Disse que Cersei teria três filhos, mas todos morreriam antes dela, e ela própria encontraria seu fim ao morrer estrangulada nas mãos do valonqar, o irmão menor.
Tyrion, o menor, teria usado pedras pra sufocar a irmã?
Vários elementos da profecia de Cersei foram cumpridos. Desde seu casamento com o rei Robert Baratheon, Cersei torna-se paranoica a respeito dos eventos que Meggy havia revelado. O receio de Cersei quanto à vinda de uma mulher mais jovem e mais bela é determinante para explicar o modo como ela se comporta diante de Sansa Stark, Margaery Tyrell e Daenerys Targerian. A perspectiva de perder seus três filhos a torna especialmente superpotertora e até mesmo negligente em impor limites ao seu primogênito.
Os livros sagrados dos seguidores do Senhor da Luz predisseram que depois de um longo verão viria uma longa noite, que cobriria todo o mundo em escuridão, e somente a reencarnação de Azor Ahai seria capaz de liderar as forças da luz contra as trevas pelo destino do mundo.
A longa noite durou uma noite.
Essa profecia foi essencial para estabelecer que o inverno que estava por vir não seria um inverno qualquer. Com ele viria a escuridão primordial que no passado quase erradicou todos os homens de Westeros, e contra a qual seria necessário reunir todos os recursos da humanidade para que ela pudesse sobreviver. Representava um inimigo inumano e uma ameaça devastadora que colocava em perspectiva as disputas políticas e os interesses mesquinhos da corte de Westeros.
Melissandre, Thoros de Myr e os seguidores do Senhor da Luz também pregavam a profecia do retorno de Azor Ahai. O Príncipe que Foi Prometido seria o único capaz de reforjar Luminífera e derrotar a escuridão.
Confesso, achei que a Luminífera seria um pouco maior.
A reencarnação de Azor Ahai é a linha que conduz os passos de diversas personagens da série. A simples interpretação de cada pessoa que entra em contato com a profecia altera drasticamente os eventos em Westeros. Com ela Melissandre convence Stannis Baratheon a entrar em guerra, a viajar para a Muralha, a sacrificar a própria filha! Thoros de Myr revive Derrick Dondarrion repetidamente e lhe dá uma espada de fogo para reunir ao seu redor os habitantes do continente devastado nas guerras pelo trono. O descanso da morte é recusado para Jon Snow quando Melissandre prevê o quão essencial é sua participação na guerra que há de vir. Nada na temporada deu continuidade ou mesmo respondeu devidamente a estes eventos.
O descaso da oitava temporada com o desenvolvimento, fechamento e interpretação dessas três profecias, centrais e determinantes para parte considerável dos eventos da série, conta para mim como um grande prejuízo para a história. A quebra destas promessas traiu o era relevante na cadeia de eventos, conflitos e temas da narrativa até então.
2. Temas abandonados, distorcidos e reduzidos
A primeira cena da primeira temporada de Game of Thrones nos mostra três patrulheiros atravessando para o lado norte da Muralha. No desenvolvimento desta cena vemos, pela primeira vez, um Caminhante Branco. O inimigo da humanidade que aparece para nós antes mesmo que qualquer uma das personagens principais.
Os Caminhantes Brancos personificam um tema amplamente estabelecido na primeira temporada e atravessa toda a narrativa da série. Eles representam o Outro.
O que quero dizer com o Outro?
O Outro é tudo aquilo que não sou Eu, não somos Nós. É o desconhecido, aquilo que não se conforma com nossas crenças, concepções e percepções. Com o Outro não podemos estabelecer uma via de contato pacífica, pois não temos uma base em comum. Neste sentido, os Caminhantes Brancos são o Outro por excelência, totalmente alienados de qualquer conexão com a humanidade que ameaçam destruir.
E o tema do Outro é um eixo que move a série. Ele aparece também em diversas dualidades representadas nela. O Norte e o Sul, os Selvagens e a Patrulha da Noite, Westeros e Essos, Gelo e Fogo, estes pares reproduzem em graus menores a mesma cisão entre o Eu e o Outro que ocorre na díade Humanidade e Caminhantes Brancos. Separados de modo irreconciliável.
A Muralha é um símbolo que reforça este tema. Ela é a fronteira que divide o conhecido do desconhecido. Não à toa, ela se torna central nos conflitos da série em todas as suas temporadas. Também outras fronteiras na história cumprem este mesmo papel. Como o Mar Estreito, entre os dois continentes, que separa as disputas pelo trono de Porto Real das aventuras de Daenerys, a última herdeira da antiga família real. Ou como a ponte das Gêmeas, a principal passagem que permite a travessia do Norte para o Sul dos Sete Reinos.
E este conflito com o Outro, tão central para toda a história desde o princípio, foi paulatinamente esvaziado nas temporadas finais. Até ser esfaqueado e esfarelado pela pressa e conveniência de um roteiro que se obrigou à hiper simplificação.
Estas dualidades em torno do tema do Outro, muito interessantes bem executadas nas primeiras temporadas, foram abandonadas, distorcidas ou reduzidas ao ponto do clichê. E este é apenas um dos vários temas que A Guerra dos Tronos nutriu, plantou e tacou fogo no final.
3. Conflitos Ignorados
O conflito entre Norte e Sul, outro motor importante da série, teve para mim um final insatisfatório. Personificado no embate entre as Casas Stark e Lannister, o seu desdobramento nos proporcionou questões complexas. Como por exemplo qual a natureza do poder e quais os limites da honra. O Entrechoque destas duas casas simbolizam os dois hemisférios, dois conjuntos de valores, dois modos de vida completamente opostos. Até mesmo o fato de estas duas casas serem as mais ligadas à família, a sua unidade, a sua proteção e sobrevivência, torna mais evidente o quão diferentes são seus membros quando dirigidos por ideais tão distintos.
A oposição entre honra e sede de poder, deveria ter sido determinante de ponta a ponta na narrativa de Game of Thrones. Ao menos tanto quanto a oposição entre Norte e Sul e entre Starks e Lannisters. O que inclusive parecia ser a pretensão da série ao manter Cersei Lannister como um dos inimigos finais da última temporada. Para eu não consumir todo o teu tempo e paciência, nessa postagem devo me restringir a um exemplo de como o encerramento da série foi decepcionante para este conflito.
O desenvolvimento de Sansa Stark era a imagem desta dualidade. Ela sela sua posição no conflito entre as duas famílias (e aquilo que representam) quando escolhe mentir para Ned Stark e protege Joffrey Baratheon/Lannister. Não à toa, ela perde a sua Loba, Lady, logo em seguida. A morte deste símbolo da Casa Stark é um produto da mentira e desonra da jovem. Isto é o seu equivalente de um "pecado original", cujo preço a pagar será o violento processo de perda da sua ingenuidade e sinceridade, assim como da perda da sua confiança na honra e na lealdade dos outros – tudo que era importante para os valores dos nortenhos. Sansa não apenas precisou abandonar suas ilusões de infância para sobreviver, mas também precisou esquecer os costumes e os ideais dos Stark.
Os produtores da série tornam Sansa a Senhora de Winterfell na oitava temporada. Eu não veria nenhum problema com este ponto – se ele tivesse sido desenvolvido de modo satisfatório e apropriado para refletir os conflitos internos e desafios particulares colocados diante de Sansa Stark.
Como voltar a confiar nas pessoas? Como voltar para o Norte, para um estado regido por laços de juramentos, honra e lealdade, e reger este povo depois de ter lidado com as mentiras, manipulações e traições típicas das políticas na corte do Sul? Sansa não poderia jamais ter se adaptado perfeitamente ao papel de Senhora de Winterfell. Qualquer aprendizado desenvolvido por ela precisava lidar com as contradições intrínsecas da personagem desde o seu "pecado original".
Em vez de se ver com estas questões, Sansa demonstrou um aprendizado político irrealista. Não foram poucas as cenas incapazes de nos convencer que a Sra. Stark aprendeu realmente a enganar e manipular pessoas com a Cersei e com o Mindinho. Em suas mãos, a honra dos Stark se reduziu a brandir discursos de independência e a pressionar as famílias nortenhas a cumprir obrigações por juramento – sem realmente demonstrar como a Casa Stark ainda mantinha os modos de vida dos antepassados, nem como Sansa Stark merecia ser o símbolo desta honra.
Enfim, livre!
Escrever esta postagem foi um processo essencial para que eu pudesse começar a me reconciliar com o término de Game of Thrones. Obriga-me a reviver os pontos positivos e negativos dessa narrativa épica, e me permite a catarse que o show me negou. Sinto-me agora livre para continuar meu caminho, quem sabe um pouco menos traumatizada
TL:DR ~ Muito longo - Li foi nada!
Se eu não morri assistindo Game of Thrones foi por pouco.
Game of Thrones se tornou um grande marco para as séries de fantasia.
É impossível medir minha admiração e meu desespero por essa história em uma única postagem.
Muitas promessas foram quebradas.
Temas relevantes estabelecidos no início da série descapotaram no final.
O desenvolvimento dos conflitos e das personagens foram prejudicados nas últimas temporadas.
Os subtítulos dessa postagem parecem descrever o doloroso fim de um relacionamento amoroso
Fernanda, creio que a postagem em questão resume muito bem o que senti com este final de Game of Thrones: um misto de frustração intensa, de sentimento de desperdício de premissas, promessas e profecias muito interessantes e bem construidas ao longo da narrativa, e de um grande alívio ao ver a 8 temporada, esse barco pegando fogo, finalmente afundar de vez. Considero que esta última temporada foi só a culminação de um rumo desastroso que a série tomou desde que se afastou mais e mais do material literário preexistente, conforme a perda de qualidade progressiva e evidente atesta. No caso de GoT pelo menos nos resta os livros para obtermos um final decente (se o Martin de fato conseguir terminar)…
Adorei! Passei o post todo pensando "caramba, isso aqui me lembra demais fim de namoro", ainda mais pela ideia de se ver simultaneamente machucada por algo, mas livre também. E passar quase uma década de investimento emocional pra depois receber uma coisa que parece praticamente feita nas coxas como payoff é tão dramático quanto. Tipo, no início do relacionamento ainda existe aquela coisa da "infatuation", do frio na barriga e no corar sempre que as mãos se tocam por acidente (e a primeira temporada faz jus a tudo isso porque, da mesma forma que a gente olha pra pessoa amada depois de alguns meses de relação naquela fase lua de mel e pensa "era exatamente como eu imaginava", é opinião…
Quero dizer de cara que aplaudo a iniciativa dessa página e concordo com todas as críticas que você escreveu e também com as que deixou de fora, que conheço devido ao privilégio de nossa convivência próxima IRL.
Apesar dessa concordância, quero mencionar dois pontos que, para o caso dessa série em especial, complicam o que você disse, ou melhor, tornam insuficiente dizer só o que você disse.
O primeiro é a questão da adaptação de uma obra de fantasia dos livros para a TV. Alguém poderia dizer que a mudança de mídia, com ajuste às expectativas de um público mais amplo e variado, bem como com as constrições de tempo e de orçamento, explicaria por que a história não se…
Não posso negar, eu tenho um certo deleite ao ver tanta gente insatisfeita com o final dessa série, pois lembro, lá em 2014, eu cuidando da minha vida e meus amigos mais próximos me enchendo a paciência pra assistir ou simplesmente me excluindo das conversas, porque eu nunca assisti UM episódio inteiro de game of thrones. A verdade, é um problema pessoal com o formato serial, mas eu era tachado como - "querer pagar de diferentão "; Então, talvez eu tenha saído por cima ( quem ri por último..)... enfim, mas, sobre a postagem, me fez pensar sobre como talvez a popularidade de algo seja perigosa para a exploração criativa desse conteúdo, deve ter muita gente que gostou do beij…