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Foto do escritorFernanda Borges da Costa

DARK (S02)

Atualizado: 4 de jan. de 2020

"Um ciclo sem fim"

[Contém Spoilers]



Seis meses depois dos desaparecimentos das crianças em Winden, ainda não há notícias de Mikkel Nielsen e Jonas Kahnwald. Os policiais de Winden põem em ação em 21 de junho de 2020 uma força tarefa na cidade. Mas Jonas está em 21 de junho de 2053, onde foi parar depois de ser aprisionado por Helge Doppler no passado, enquanto Mikkel passou a viver em 21 de junho de 1987.


Dark é uma série alemã com um roteiro original de Drama/Suspense e Ficção Científica. A narrativa da série é o produto de uma complexa cadeia de eventos que ocorre na mesma cidade em linhas temporais distintas, vistas da perspectiva dos viajantes no tempo. A primeira temporada apresentou (principalmente) três linhas temporais em três anos distintos (1953, 1986 e 2019), enquanto a segunda temporada explora duas linhas temporais a mais (1921, 1954, 1987, 2020 e 2053).


Dark possui um roteiro original, escrito por Baran bo Odar e Jantje Friese, e enfrenta desafios bem diferentes de enredos com roteiro adaptado. Um roteiro adaptado é baseado na transposição de um conteúdo produzido anteriormente para uma mídia distinta (por exemplo, de livro para série de TV). A escrita do roteiro adaptado depende em grande parte do recolhimento e da organização das informações já presentes no seu material de origem. Uma série como Dark, contudo, depende do planejamento prévio da criação do enredo. Cada tipo de roteiro possui dificuldades diferentes e a série enfrenta de modo (em grande parte) notável com o desafio de contar uma história complexa de viagem no tempo.


E apenas um planejamento perfeito (ou pelo menos quase perfeito) é capaz de lidar com viagens no tempo em cinco diferentes linhas temporais. Até os próprios personagens precisam de anotações e esquemas para acompanhar o que está acontecendo.



Ou quando está acontecendo.



Para teres uma ideia, nas suas duas temporadas a série possuiu ao todo 29 personagens principais, das quais 21 são interpretadas por dois ou mais atores. Ou seja, nós temos que acompanhar mais de um terço das personagens em no mínimo duas linhas temporais distintas. Concluo, por isso, que Dark é na verdade uma série de Terror que une o pior pesadelo das pessoas com dificuldade de decorar fisionomias com o pior pesadelo das pessoas com dificuldade de decorar nomes.


Não entre em pânico, vai ficar tudo bem. Não há vergonha nenhuma em buscar um guia na internet com material de apoio para facilitar a experiência – que vale à pena – de acompanhar Dark. Mas esta postagem não pretende ser mais um guia sobre os acontecimentos em Dark. Como explicações para os eventos das duas temporadas recomendo o resumo detalhado de cada personagem no Afictionados (em português), e o resumo dos principais eventos e questões abertas no How Do I Mom (em inglês).


Nesta postagem falarei sobre como compreendi a construção narrativa da série a partir da união de dois gêneros e os temas que ela explora. Pessoalmente, eu não considero essencial ter anotações precisas e quadros perfeitos de cada pessoa, data e evento relevantes para que tu possas apreciar a série. Assistir Dark não precisa ser como aquela noite de estudos antes da prova de taxonomia. Mais importante que lembrar todos os detalhes é compreender a narrativa. E existem alguns atalhos contidos nos gêneros e nos temas que ajudam a entendê-la. Mostro aqui como foi meu próprio processo de apreciação da série.



Como entender Dark?


Imagens reais do público da série em seu ambiente natural.


Dark é uma série que une dois tipos de narrativas, o da cidade pequena, cuja paz é perturbada por eventos misteriosos e por intrigas familiares, e o dos desafios e perigos da viagem no tempo. Cada tipo narrativo pertence a um gênero específico: o mistério e os conflitos familiares unem Drama e Suspense, e viagem no tempo é Ficção Científica. Cada gênero estabelece um tipo narrativo a partir do uso de um conjunto de elementos constitutivos do tipo de história que se quer contar. Por exemplo, uma narrativa de viagem no tempo deve lidar com paradoxos e alterações temporais, enquanto que uma narrativa de cidade pequena com drama familiar depende que uma tragédia ocorra para que se revele a fragilidade de sua aparência pacífica, e para que os segredos escondidos sejam revirados.


Mikkel na primeira temporada

personifica a fusão dos dois tipos narrativos.


Todas as histórias possuem elementos constitutivos que a identificam em certa categoria, gênero, época etc. Uma sitcom familiar não pode existir sem que suas personagens componham uma família, ainda que o seu conceito de família possa variar de uma série para outra. (Logo, família é um elemento constitutivo destas séries). Atualizações são essenciais para manter os mesmos tipos narrativos interessantes e nos convencer de assistir tanto Arrested Development quanto Modern Family e One Day at a Time.


Dark também é uma série sobre famílias. Mas ela atualiza os temas das relações familiares a partir da sua fusão com viagens no tempo. O meu próprio processo de compreensão da série passa por interpretar como esta fusão de gêneros influencia seus temas. Falarei a respeito disto nos próximos tópicos.



Gênero 1: Relações Familiares (Drama/Suspense)

Os eventos em Winden giram em torno de quatro famílias locais: os Tiedemann, os Doppler, os Kahnwald e os Nielsen. Todas vivem em Winden há várias gerações, a ponto de que suas histórias se confundem com a história da cidade. Tanto as relações familiares como o convívio entre as famílias definem as características das personagens e os mistérios investigados.


(Infográfico da Superinteressante)

Consegues apontar qual o conflito que entre os membros de cada família?


Relações familiares produzem conflitos. Eu identifico conflitos, por exemplo, quando posso perceber que na relação entre duas ou mais pessoas, o que cada uma deseja, faz ou planeja, contrasta com os desejos, ações e planos da outra pessoa. Como quando fiz vestibular para Direito, depois que meu pai sugeriu que eu fizesse Medicina e minha mãe dissesse que eu poderia fazer o que eu quisesse – desde que não fosse Direito.

A associação família-conflito é uma vantagem em histórias que apresentam múltiplas personagens de uma vez. Nós conseguimos lembrar melhor de cada personagem conforme as associamos com um conflito específico. E conflitos ajudam a definir uma personagem, o que ela quer, quais planos ela tem, que tipos de escolha ela faz. Além disso, com frequência as primeiras personagens que uma série mostra são centrais para o desenvolvimento da história. É este o caso também em Dark.


Mas em Dark, os conflitos familiares estão fundamentalmente influenciados pela capacidade de seus habitantes de viajar no tempo. A tal ponto que não é possível entendê-los sem levar as várias linhas temporais em conta.


A abertura do primeiro episódio na primeira temporada revela de imediato um conflito: um pai comete suicídio e deixa uma carta, enquanto o filho, sem saber como lidar com a morte do pai, sofre com pesadelos e toma remédio controlado. Antes mesmo de sabermos o nome das duas personagens, já compreendemos algo do seu conflito familiar, e temos ao mesmo tempo contato com um dos mistérios principais que move a temporada. Mas para de fato entendermos estes conflitos, é preciso que saibamos que Michael Kahnwald é na verdade Mikkel Nielsen.



A ausência de explicações para a morte de Michael é o primeiro mistério colocado pela série, que junto com o desaparecimento de Mikkel (que ocorre na data inscrita no envelope da carta de suicídio), será o estopim para todos os conflitos das famílias principais. Ambos levam à desestabilização das famílias Kahnwald e Nielsen, e tematizam os traumas da perda de um ente querido por meio da morte inexplicável de um pai e a perda precoce de um filho.


Com a revelação da identidade de Michael e a natureza paradoxal do nascimento de Jonas, a segunda temporada dá um passo adiante no drama, ao mostrar que algumas viagens e alterações temporais foram planejadas por alguém. Pelo menos dois grupos distintos (Adam, de um lado, e Claudia, de outro) têm se utilizado das viagens no tempo para cumprir seus próprios propósitos, o que altera a natureza dos eventos da primeira temporada de acidentes para produtos de escolha humana.



A descoberta de que foi o próprio Jonas que guiou Mikkel através da caverna para 1987 é um dos momentos que nos obriga a esta mudança de perspectiva.


Tema 1:

O desenrolar destes conflitos familiares nos revela um dos temas marcantes de Dark: a relação entre pais e filhos. É a conexão ao mesmo tempo emocional e existencial entre as gerações familiares que molda as identidades e motivações das pessoas. E este mesmo tema estabelecido desde a primeira temporada é revisado na segunda, pela perspectiva de que as origens dos conflitos e experiências de cada personagem não são simples fruto do acaso, mas das suas próprias escolhas ou a de seus antepassados. O produto da escolha humana afeta toda a sua linhagem, como uma maldição de tragédia grega.


Dark lida com a trajetória de suas personagens de modo bem particular. O problema ou conflito que se inicia numa pessoa muitas vezes tem sua resolução transferida para a história de outra (o que pode nos deixar com a sensação de que o desenvolvimento da primeira foi deixado de lado). Veja por exemplo a relação entre Katharina e Mikkel Nielsen e a relação entre Ines e Michael Kahnwald.



O primeiro par conta-nos a história da mãe que sofre a perda irreparável de um filho e da desolação do filho que é extraviado irremediavelmente de sua família. Já o segundo par conta-nos a história da mulher que descobre a maternidade quando passa a amar profundamente uma criança solitária e de um menino perdido num mundo estranho, que reencontra um lugar para viver neste acolhimento. Não é possível resolver o conflito de Katharina em 2019, porque ele é solucionado na vida de Ines em 1987.


Mas outras relações familiares não são tão bem desenvolvidas na série. Algumas personagens são subaproveitadas, como no caso de quase todos os adolescentes. A relação entre Bartosz e Regina Tiedemann, por exemplo, é praticamente inexistente. Outras personagens até passam mais tempo no foco narrativo, mas possuem um desenvolvimento que deixa a desejar. Este é, a meu ver, o caso de Hannah.


Hannah Kahnwald torna-se amante de Ulrich Nielsen. Ela parece buscar em Ulrich algo que perdeu, uma constante, algo provavelmente relacionado às ausências de Michael (da festa e, depois, pelo suicídio). Ulrich foi o seu primeiro amor escolar (de antes de conhecer Michael), e representa para Hannah algo como um retorno à infância. E Nielsen, no presente, é um homem casado com a mesma mulher que namorou desde a adolescência, a epítome da estabilidade familiar. A inveja de Hannah contra Katharina é praticamente palpável.


Quando, na segunda temporada, Hannah viaja para 1953, tenta chantagear Ulrich e decide abandonar tudo para recomeçar a vida no passado, essa escolha não só não resolve seu conflito fundamental de perda de estabilidade, inveja e luto, como também trai sua caracterização inicial. Essa decepção foi especialmente dolorosa para mim, porque o nome "Hannah" é um palíndromo, e isso me dizia que ela era importante em Dark – cujo outro tema fundamental é o paradoxo início-fim, em que o mesmo evento dá início e fim a uma cadeia de ações.


A impressão que tenho é a de que a narrativa se concentra na organização das linhas temporais em detrimento do desenvolvimento das personagens. Uma personagem raramente está fazendo algo (importante ou não) enquanto a lente da câmera não está focada sobre ela. É apenas quando a atenção retorna para a personagem que ela volta a fazer, querer ou planejar algo. Katharina ora está em casa sem fazer nada, ora está à procura do filho desaparecido, e alterna de um para o outro apenas quando convém ao roteiro, sem que sua decisão se justifique pela lógica da própria personagem.



Gênero 2: Viagem no Tempo (Ficção Científica)



Normalmente, o passado é imutável. O futuro é que é aberto a possibilidades e carrega alternativas ainda não determinadas pelo presente. Mas e se fosse possível evitar uma morte, alterar as consequências de decisões trágicas, evitar um acidente? A capacidade de viajar no tempo afeta profundamente o modo como podemos perceber a experiência humana.


Nós percebemos o tempo com velocidades variáveis, mas sempre como uma progressão constante através da qual nos movemos no presente, indo do passado para o futuro. É a quarta dimensão da nossa realidade, na qual medimos eventos que ocorrem no espaço tridimensional.


Percebemos a seta do tempo como invariável e irreversível, movendo-se sempre em uma única direção. A teoria da relatividade de Einstein demonstra como nós poderíamos saltar para o futuro, conforme o movimento natural da seta do tempo, mas viajar para o passado seria algo completamente diferente. Se considerarmos também a segunda lei da termodinâmica, a entropia de um sistema fechado pode apenas ou permanecer constante ou aumentar, mas nunca diminuir...


OK, OK, desculpa, tens razão: Não precisamos ir tão longe. Sobre viagem no tempo, basta levarmos em conta esses três pontos:

  • Percebemos o tempo de modo linear, sempre do passado para o futuro.

  • Viajar para o futuro não altera a linearidade do tempo, pois a seta temporal do viajante permanece na mesma direção da nossa percepção temporal.

  • Mas viajar para o passado é mais complicado. Vai contra a seta do tempo, desafia a linearidade, embaralha a continuidade das relações de causa e efeito, e cria paradoxos temporais.


O truque e mágica de Mikkel antecipa seu desaparecimento.

Os copinhos não representam onde, e sim quando.


Tema 2:

De viagens no tempo, Dark retira um segundo tema: os paradoxos temporais. Em especial os paradoxos que mais afetam nossas percepções entre causa e efeito, de tal modo que modifique a natureza da determinação de certos eventos pela sorte ou por Deus (sobre-humano), para uma determinação fruto das escolhas individuais (antropocêntrica). O domínio do homem sobre o tempo leva a um domínio do homem sobre si mesmo, sua origem, vida e morte.


Com as viagens no tempo, a narrativa de Dark acrescenta às relações familiares um labirinto multitemporal de eventos, cuja sequência de causa e efeito já não está mais limitada ao antes e o depois. Um salto para o passado faz com que o futuro do viajante passe a correr no tempo passado, e suas ações podem desencadear efeitos que afetem seu próprio passado – que agora passa a ser também seu futuro. E quando tu vês, estás apaixonado pela tua tia ou já és filha da tua própria filha.


Enfim, ao viajar no tempo como se viaja no espaço, a principal constante capaz de medir o antes e o depois torna-se o próprio homem.



E quando o viajante quebra a lógica da continuidade entre causa e efeito, por introduzir novos eventos no passado, ele gera um paradoxo temporal que pode ser fechado ou aberto.


Jonas Kahnwald é fruto de um paradoxo temporal de tipo fechado. Jonas não poderia resgatar Mikkel de 1986 e retorná-lo para 2019, pois isto elimina as circunstâncias do seu próprio nascimento. O que antes parecia uma experiência temporal linear agora se torna circular, em que ações do passado e do futuro se misturam para determinar os eventos em ambos os tempos. No início da primeira temporada eu acreditava que Jonas era a chave para eliminar (ou ampliar) o paradoxo, até chegar na história de Charlotte e Elisabeth na segunda temporada.


Dá para ser mais circular que isto?


Estes são dois exemplos de paradoxos temporais fechados, em que os eventos no presente (tal como os vimos) já foram afetados pelos eventos no passado realizados sob a influência de várias outras viagens no tempo. Eles giram em um sistema fechado, de causa e efeito circular. Sistemas fechados criam círculos (loops) temporais em que início e fim se aproximam, ou se tornam até mesmo indistinguíveis. Cria-se neles a sensação de que os eventos são inevitáveis, futuro e passado estão predeterminados em um ciclo sem fim.


Mas, tu poderias me perguntar, como seria um paradoxo temporal aberto?


Se Jonas retorna Mikkel para a família Nielsen em 2019, ele elimina as condições para o seu próprio nascimento. Há dois resultados possíveis: ou Jonas desaparece, ou ele não desaparece. Para que Jonas desapareça, é preciso que todos os eventos ligados ao seu nascimento sejam apagados de qualquer registro temporal, e algumas histórias de viagem no tempo optam por esta alternativa (como o clássico "De Volta para o Futuro"). Mas se Jonas não desaparecer, temos em mãos um paradoxo temporal aberto. Nesta hipótese, Jonas¹ pertence a uma linha temporal¹ em que Mikkel¹ tornou-se Michael e casou-se com Hannah. Se Jonas¹ retorna Mikkel¹ para 2019, ele abre uma linha temporal² alternativa, na qual Mikkel² nunca será seu pai. Duas linhas temporais (1 e 2) passam a existir, em que Jonas nasceu apenas na primeira (como ocorre em "Vingadores: Ultimato").


Em resumo, um paradoxo temporal aberto gera linhas temporais alternativas e coexistentes. Criam-se, então, dimensões alternativas, que são linhas temporais paralelas com algumas diferenças entre elas. Suspeito que a série não construiu apenas sistemas fechados. Dessas conjecturas retiro algumas hipóteses para a terceira temporada de Dark:

  • Acredito que Adam seja uma versão de Jonas que retornou Mikkel para 2019. Ele teria eliminado o seu próprio paradoxo temporal, mas sem deixar de existir. Desse modo, Adam cria uma dimensão alternativa em que ele nunca nasceu (de onde talvez venha a Martha da outra dimensão), mas na qual viagens do tempo não deixaram de ocorrer, e novas linhas temporais e dimensões paralelas passam a existir.

  • E por que viagens no tempo continuariam existindo? Minha teoria é a de que o buraco de minhoca que permite viagens no tempo passou a existir por causa da explosão da usina nuclear, que só ocorre graças ao paradoxo entre Charlotte e Elisabeth e que afeta o tempo tanto para trás quanto para frente. Adam pode estar em busca de desfazer este paradoxo entre mãe e filha. Talvez por isso precise criar uma forma de viajar no tempo que não dependa da explosão na usina.

  • Jonas adulto salva Bartosz, Franziska e Magnus da explosão nuclear. Juntos em algum momento se tornarão parte dos fundadores da organização Sic Mundus.


Foto dos fundadores da Sic Mundus.


Os paradoxos temporais em Dark causaram a multiplicação de objetos e pessoas. Na segunda temporada existem no mínimo duas máquinas do tempo coexistindo. Mas não são várias máquinas, e sim várias versões da mesma máquina de linhas temporais distintas. Algo semelhante ocorre com outros objetos, como o caderno de Cláudia, o mapa da caverna ou o livro “A Jornada Através do Tempo”, escrito por H. G. Tannhaus.



Além de acontecer também com pessoas.



Ao longo da segunda temporada fica claro que existem dois grupos disputando controle sobre as alterações e viagens temporais. Um segue Adam, o outro segue Cláudia. As fidelidades dos membros de cada grupo e os próprios planos de cada personagem parecem se alterar a partir das informações que possuem. Em todo caso, para ter uma imagem mais completa do quebra-cabeças, ainda é necessário assistir à terceira temporada.



A Fusão entre Tempo e Família

Dark se utiliza da viagem no tempo e das relações familiares para explorar os seus temas principais de modo muito criativo. Se, como comentei acima, a complexidade da série afeta o bom desenvolvimento das personagens, pelo menos a fusão dos dois gêneros aprofunda as derivações dos temas de identidade, origem, vida e morte.


Nossa realidade segue um tempo linear unidirecional, e nela o conhecimento é transmitido de uma geração para a outra sem sair da lógica da natureza da vida: sempre do nascimento para a morte. Nela, o passado só pode ser experimentado pela memória dos que viveram, e o futuro pela continuidade dos que viverão. Os pais voltam a experimentar a infância através dos filhos, e estes, quando crescem, revivem as experiências da vida adulta dos pais. Através do ciclo de vida o ser humano (a espécie, coletivamente, e não o individuo) vence a morte e conquista o tempo.


As fotografias são um dos objetos representativos da memória familiar.


Minha avó e eu. Nossa maior semelhança é o olhar assassino.


Mas a viagem no tempo resulta numa outra maneira de experimentar o ciclo de vida e morte. A possibilidade de existir fora do tempo natural, como Mikkel, que frequenta a escola na mesma época que seus pais, dá um novo sentido às fotografias. Elas já não representam mais a sequência de passado, presente e futuro, e sim tempos distintos que coexistem.


Experimentar a temporalidade de modo não-linear afeta profundamente o modo como as personagens percebem a si mesmas e fazem suas escolhas. É seguro dizer que Adam, como Jonas, sofre com a morte de Martha. Mas para desencadear alguma sequência de eventos, Adam mata Martha. Adam, como Jonas do futuro, sabe o que vai acontecer, ou talvez saiba o que precisa acontecer para alcançar o seu objetivo. Sua perspectiva do passado – algo que já passou – altera o modo como percebe o assassinato de Martha. Que, por sua vez, é percebido como monstruoso e alheio na perspectiva do Jonas jovem, no presente. As perspectivas de cada um é localizada no tempo, e isso os transforma em pessoas distintas, que experimentam vida e morte, escolha e liberdade, de maneiras diferentes.



Por ter viajado no tempo, Cláudia descobre a data do falecimento de seu pai, Egon Tiedemann. Ao tentar evitar a sua morte, ela acaba provocando-a. Talvez seja por este evento que Cláudia, ao descobrir as circunstâncias da própria morte – como quem aprendeu uma lição –, decide não evitá-las, mas inclusive toma medidas ativas para que ela morra nas mãos de Noah, exatamente conforme a notícia do jornal.



Dark expande a capacidade de tematizar as relações e conflitos familiares em novas cadeias de influência. É apenas com a união entre os dois gêneros literários que Dark pode explorar os paradoxos das relações interpessoais de pais e filhos e da nossa relação com passado, presente e futuro. O primeiro é, entre outras coisas, o início e o fim da vida humana. Enquanto o segundo é a capacidade de experimentar sua própria vida através do outro-parente que foi ou que será como nós.


A relação entre Jonas e Adam representa esse percurso existencial em busca da sua própria identidade; uma identidade autodefinida através da narrativa que unifica passado, presente e futuro, que não é mais linear. Os desaparecimentos das crianças em 1953 (Helge Doppler), 1986 (Mads Nielsen) e 2019 (Erik Obendorf, Mikkel Nielsen, Yasin Friese), que eventualmente revelam os segredos da viagem no tempo, são como sacrifícios cíclicos que Winden paga a cada 33 anos. E a relação de mãe e filha de Charlotte e Elisabeth representa o paradoxo da origem da existência – entrega à humanidade sua própria origem, retirando-a tanto da criação divina quanto do mero acaso.



Símbolos

Dark lança mão de vários símbolos que representam o modo como a série interpreta as viagens no tempo e os paradoxos temporais. Selecionei alguns deles, os que mais me chamaram atenção. Se tiveres notado outros, não deixes de comentá-los!


Talvez o principal dos símbolos seja o numeral 3. Ele está por toda parte! Até mesmo os criadores da série disseram, desde o início, que pretendiam escrever uma narrativa para três temporadas. A série inicia com três linhas temporais e a Triquetra é uma presença constante na série.



Triquetra, do latim triquetrus (de três pontas), é um laço de três nós perfeitamente conectados entre si. Este é um símbolo antigo de origem indefinida, que na simbologia esotérica representa o tempo infinito. Existem registros da Triquetra em povos e épocas bem distintos, dos Vikings às dinastias chinesas, mas sua representação mais conhecida hoje é céltico-pagã do divino, do ciclo interminável da vida. Ela foi integrada ao catolicismo como parte da representação da divina trindade.


Trinta e três é a distância entre cada salto temporal, o que leva a ciclos de 33, 66 e 99 anos nos eventos da série. Este número também faz parte calendário gregoriano. O ano lunar (ligado aos ciclos da lua) tem em torno de 354 dias, enquanto o ano solar possui 365 dias. Nossa cultura ocidental adota um misto entre o calendário solar (anual e mensal) e o lunar (semanal e mensal), e a cada 33 anos surge um ano inteiro de discrepância entre os calendários solar e lunar originais. Convencionou-se para nós mitigar a discrepância de 11 dias entre os dois calendários com meses de 30 e 31 dias, e com a inclusão dos anos bissextos.

São três os principais viajantes no tempo (Jonas, Claudia e Noah), Jonas possui três versões de si que se encontram durante os eventos da série, e são três pessoas que passam a viver noutro tempo que não o seu original (Mikkel, Ulrich e Hannah); com exceção de Charlotte, cujo loop com Elisabeth ainda não consigo encaixar nesta simbologia.


A série usa em quase todas as cenas composições que realçam as três cores primárias: vermelho, azul e amarelo.



São três também as portas no cenário da peça da escola sobre Ariadne, Teseu e o Labirinto do Minotauro.



E isto traz outro símbolo que é constante na peça: o Fio de Ariadne. Segundo a mitologia grega, Ariadne é a princesa cretense que com seu fio ajuda a guiar Teseu para fora do Labirinto do Minotauro. O fio vermelho na cintura de Martha repete-se no fio que conduz Jonas pela caverna e na corda que segura o medalhão.



Uma interpretação mais óbvia é a associação de Martha com Ariadne e Jonas com Teseu, e a relação entre os dois é o fio-guia que conduz Jonas pelo Labirinto do Tempo (cuja representação física pode ser a própria caverna) dominado pelo Minotauro (Adam ou Claudia). Mas este mito possui múltiplas interpretações e há uma chance de mais de uma delas estar representada na série.

Ah, sim, o Medalhão traz a imagem de São Cristóvão, carregando uma bengala e uma criança nas costas. A igreja de Winden é consagrada a ele e Noah, ao encontrar Mikkel no hospital, diz ser um padre dedicado a este santo. São Cristóvão foi um mártir do terceiro século d.C. que se tornou protetor dos viajantes. Na série, São Cristóvão talvez passe a ser a representação dos viajantes no tempo.


Por fim, há outro medalhão que foi encontrado com Claudia após sua morte. Não sei ainda qual seu significado, mas provavelmente será importante para a terceira temporada. Se quiseres saber minha hipótese, suspeito que seja uma chave ou um componente essencial para uma máquina do tempo/interdimensional.



Contexto Histórico


Quando interpretamos uma narrativa, podemos considerar, entre outras coisas, suas referências externas e seu contexto histórico. Referências externas são todas aquelas conexões que a narrativa faz quando absorve, dialoga ou ressignifica elementos de outras obras. O mito do Labirinto do Minotauro é um exemplo de referência externa. O contexto histórico, por outro lado, nem sempre está expresso explicitamente na obra, e muitas vezes é inferido a partir de interpretações que extrapolam o significado imediato da narrativa. Eu não sou alemã, nem descendente de alemães, e conheço apenas um pouco da história da Alemanha. Levando isto em conta, atrevo-me a uma breve interpretação histórica da série.


Os eventos de Dark ocorrem em Winden, uma cidade fictícia na Alemanha. A princípio, não há uma conexão direta com nenhum local ou momento histórico alemão. É possível dizer, inclusive, que há algo de universal na série, que afeta qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo. Mas eu gostaria de defender que Dark se beneficiaria de uma interpretação histórica, independente, inclusive, das várias entrevistas dos diretores e roteiristas principais e do que já forneceram a respeito do seu processo criativo.


Dark tematiza, por um lado, as relações ambíguas entre pais e filhos, no modo como cada nova geração precisa se estabelecer diante da geração anterior. Em que os filhos buscam redimir os erros e as escolhas dos antecessores, e precisam lidar com as circunstâncias deixadas para eles a partir das escolhas daqueles que vieram antes. Por outro lado, com os elementos ficcionais da viagem no tempo, Dark ressignifica vários dos conflitos familiares, a repetição dos eventos em épocas distintas, centralizando-os no próprio indivíduo, capaz de lutar contra várias versões de si mesmo ao longo do tempo. Preso num ciclo infinito de repetição causado por si próprio e do qual não vê possibilidade de escapar.


Isto ressoa profundamente com a história da formação do país germânico e o modo como a Alemanha lida hoje com o seu passado. Vamos relembrá-lo um pouquinho.


A unificação dos povos germânicos foi um evento relativamente tardio para os padrões europeus. Deu-se ao final das guerras Franco-Prussianas no fimdo século XIX, com a fundação do Império Alemão em 1871. A formação de alianças e a expansão colonial levou o Império a vários conflitos com países como o Reino Unido, Rússia, Estados Unidos e Japão. Estes conflitos fizeram parte dos eventos que levaram à Primeira Guerra Mundial, iniciada em 1914. Ao final da Guerra, em 1918, ocorre a dissolução do Império e a dissolução da monarquia alemã. Em 1918 é fundada a República de Weimar, que durou até a ascensão de Adolf Hitler em 1932. Hitler acaba por dar início à Segunda Guerra Mundial em 1939, ao tentar reconquistar os territórios perdidos e invadir a Polônia. Com a derrota do exército nazista na Batalha de Stalingrado em 1943, e o final da Guerra em 1945, a Alemanha perde novamente sua autonomia territorial. Berlim é dividida pelo muro em 1961, e ele cai apenas em 1989.


A história da Alemanha desde o Império é marcada por uma série de guerras e disputas territoriais que afetaram drasticamente a sua formação cultural e identitária. O povo alemão unificou-se tardiamente e seu envolvimento nestas três guerras (Franco-Prussiana, Primeira e Segunda Guerras Mundiais) foram grandes lapsos de continuidade entre a formação de uma identidade nacional e outra. Com pouco mais de um século de história, a experiência alemã hoje é profundamente marcada por estas identidades cindidas, pela vergonha e culpa do nazismo e do holocausto, e pela separação do país e da capital.


A história alemã parece estar refletida no modo como Dark apresenta a percepção do tempo circular. As identidades individuais e a percepção geral do tempo na série nascem a partir da repetição dos padrões do passado, mesmo quando se tenta escapar deles. O senso de impossibilidade de mudar o que aconteceu antes, que permeia o enredo de Dark, coloca as suas personagens na mesma condição da identidade alemã. Os habitantes de Winden são incapazes de uma relação saudável com seu passado, com sua memória e com a culpa que as gerações anteriores carregam.


Desde o início do Império, que reunia povos germânicos bem distintos, buscou-se a formação de uma identidade única e duradoura. Cada vez que a nacionalidade alemã era subjugada, perdia-se o senso de continuidade e se retomava uma busca por sua origem e identidade comum. Seu ciclo histórico parece sempre iniciar e terminar com uma perda. Até mesmo na Queda do Muro de Berlim, que marca a reunificação do país. A divisão da Alemanha e sua capital foi um evento traumatizante, que separou permanentemente diversas famílias. A reunificação marcou o fim de um trauma e o início de outro: o reencontro consigo mesmo, a união de si com alguém que – 30 anos depois – já era outro.


Estes elementos históricos estão tão representados em Dark quanto as barreiras temporais que separam as famílias. Eles estão no pano de fundo da série, nas tentativas de desfazer os erros do passado que leva à sua repetição, na identidade individual cindida que luta contra si mesma, numa identidade local formada com base numa origem incerta, que renasce a cada geração, e que salta no tempo de 30 em 30 anos.



TL:DR ~ Muito Longo – Li foi Nada!

  1. Cidades pequenas são perigosas para crianças propensas a desaparecer.

  2. Relações familiares geram conflitos que estabelecem bem as personagens.

  3. Viajar no tempo pode ser complexo, mas é interessante!

  4. Apesar da tendência de provocar incesto.

  5. Dark utiliza simbologias numéricas, religiosas e mitológicas.

  6. Os temas de Dark podem estar associados à história da Alemanha.


Gostaste de Dark? Esta postagem ajudou a compreender Algo novo sobre a série? O que achas que acontecerá na terceira temporada? Vamos discutir!

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2 Comments


Nísia Chaves
Nísia Chaves
Jul 15, 2020

Olá!! Que texto bom!

Estou reassistindo as duas primeiras temporadas antes de encarar a terceira. Foi ótimo ver a sua abordagem super rica em referências. De minha parte, deixo de lado os problemas relativos à viagem no tempo e fico com o aspecto da repetição dos dramas familiares, traumas e complexos que se retroalimentam. No meu entender, ali fica bem evidente que a causa de todo o sofrimento é a não-aceitação das coisas como são, ou do mundo como ele é. Sic mundus creatus est, reconheça-o, aceite-o com os seus absurdos, físicos ou não, exercite a compaixão e tenha paz, enfim.

Abraço forte, Fernanda!

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Heitor Guimaraes
Heitor Guimaraes
Jan 03, 2020

Excelente texto! Confesso que não tinha prestado atenção à presença do três a não ser no fato de serem três linhas do tempo na primeira temporada com espaços de 33 anos. Queria fazer uma consideração. Quando olhamos os acontecimentos do ponto de vista das personagens que iniciaram a série vivendo em 2019, parece que o curso dos acontecimentos só faz com que elas fiquem cada vez mais perdidas. Sempre que aprendem algo sobre o que está acontecendo, é só para então perceberem que há ainda muita coisa que lhes escapa e para ver sua vida cotidiana ficar cada vez mais distante. E a cada vez que alguma das linhas do tempo é desenvolvida, a trama somente fica mais complicada do ponto…

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