“Durante anos, a terra natal das fadas foi um lugar de mito e lenda. Até os impérios do homem chegarem e lutarem pelo controle de suas riquezas.”
[Contém Spoilers]
Carnival Row é a série de roteiro original escrito por René Echevarria e Travis Beacham, ambientada num mundo em que a humanidade divide espaço com outros povos não humanos conhecidos como Fae, ou o termo aviltante “critch” (redutivo de "creature", criatura). Inserida no gênero de Fantasia, a série tornou-se mais uma dentre as lançadas em 2019 sob o auspício de ser o “novo Game of Thrones”. Uma comparação possível, mas que, na minha opinião, não deveria ser parte da sua divulgação principal. Por alguns motivos.
Este tipo de divulgação é largamente alimentado pelas notícias sensacionalistas sem que a comparação se sustente em busca do maior número de acessos. E as mídias que noticiam são, por sua vez, retroalimentadas pela corrida maluca dos canais de TV e Streaming, interessados na propaganda fácil. Aparentemente qualquer coisa em que estivesse escrito “Game of Thrones”, quer seja relevante quer não, vende mais.
Além disso, quando as mídias e os canais divulgam uma série como similar à Game of Thrones, elas querem dizer coisas diferentes. A comparação às vezes se refere ao gênero da nova série, de Fantasia ou mesmo de Ficção Científica. Às vezes ela ocorre porque o show traz um contexto monarquista e medieval (ou medievalesco). Noutras vezes, a comparação se refere simplesmente ao fenômeno de audiência massivo que uma série de nicho – como era Game of Thrones – normalmente não alcança. Por fim, em alguns casos, a comparação só ocorre como um outro modo de dizer: “ei, tu aí que gostaste de uma série de fantasia/ficção/política medieval, tenho outras aqui no catálogo.”
Agora que coloquei isso para fora, posso continuar. Carnival Row tem o suficiente em comum com Game of Thrones para ser considerada uma de suas “herdeiras”, sem precisar (ou pretender) ser a próxima a ocupar o trono da audiência. Ambas as séries reconstroem o enredo fantástico tradicional a partir de um foco realista, com a união entre um pano de fundo mítico-mágico e um drama político complexo. Isto que digo é controverso e vai contra uma parte considerável da crítica. Voltarei a isto no último tópico da postagem.
O drama político de Carnival Row tem como o principal pano de fundo as tensões entre criaturas mágicas e os seres humanos, obrigados pela colonização e pela guerra a conviver no mesmo espaço. Seu enredo e seus temas principais oscilam às vezes tão próximos da nossa realidade, que parece equilibrar-se entre os gêneros da Fantasia Realista e da História Alternativa. Como Fantasia Realista, Carnival Row retrata uma realidade fantástica diferente da nossa, com um contexto próprio e diverso do nosso mundo. No entanto, este mundo possui uma série de conflitos tão similares à corrida imperialista e a formação das colônias inglesas, que tangencia aspectos do nosso próprio passado (em certos aspectos, o nosso presente) histórico. A série apresenta como cenário principal, inclusive, uma cidade industrial que se assemelha com uma Londres vitoriana Steampunk.
Momento Nerd: Steampunk é um subgênero retrofuturista na Fantasia e na Ficção Científica, que localiza anacronicamente certas tecnologias do futuro em uma sociedade inspirada no século XIX, com a estética industrial das máquinas à vapor.
Este amalgama entre Fantasia e História Alternativa dá ao enredo fantástico de Carnival Row a capacidade comunicar, através de suas personagens, aspectos dos conflitos de identidade, cultura e segregação em uma sociedade desigual e colonial, com um argumento político forte e pedagógico.
Um tripé narrativo em dois estratos
Carnival Row é a representação de uma realidade cindida.
“Agora, a pátria das fadas é o inferno de onde anseiam escapar...”
A série desenha seus conflitos através da própria estrutura da cidade do Burgo, dividida entre as duas marges do rio Beorn.
Burgo é a capital e o centro comercial da República do Burgo. Na margem norte do rio Beorn estão os bairros da classe aristocrática. O mais rico e tradicional deles é Finistere Crossing, e o mais poderoso é King's Hill, onde funciona o Parlamento no Balefire Hall. Do lado sul, sobrevive grande parte da população da cidade, na qual a maior fatia é imigrante Fae. Seu maior reduto chama-se Gloamingside, que pela concentração de criaturas não humanas, passou a ser conhecido como Carnival Row.
Destes três cenários provém as três perspectivas narrativas da série.
Carnival Row (Gloamingside)
Assassinatos misteriosos têm ocorrido na área, e o ex-soldado Rycroft Philostrate, ou “Philo”, é agora detetive da política do Burgo responsável pelo caso. Philo é o único dentre os policiais do Sexto Distrito – todos humanos – que está preocupado com o assassinato em série de critchers. Ele tem uma relação amistosa com a fada Tourmaline Larou, cortesã no hotel Tetterby, e um antigo companheiro de armas, Darius Prowel, que se tornou um lobisomem ao ser mordido num incidente de guerra e agora vive encarcerado em Bleakness Keep. É neste bairro que Vignette Stonemoss, uma fada fugitiva, passa a maior parte de seu tempo tentando sobreviver à opressão local, depois de escapar da terra devastada de Anoun e ser a única sobrevivente de um naufrágio.
Ao longo da série descobrimos que Philo, Vignette e Tourmaline formaram no passado um triângulo amoroso. Sete anos atrás, quando a República do Burgo enviou exércitos para defender sua colônia no Reino de Anoun, Philo lutou como soldado ao lado das fadas. Ali desenvolveu um romance proibido com Vignette, a guardiã dos arquivos do reino mágico. Mas com a derrota na guerra contra o Pacto, Tourmaline, ex-amante e amiga de Vignette, convence Philo a voltar para casa depois de fingir a própria morte, para impedir que Vignette desperdice sua vida num romance impossível. Anos depois, quando descobre a verdade e dividida pela dor do luto e da traição, Vignette quase mata Philo.
Mas Philo temum segredo que é motivo pelo qual ele sabota quaisquer relações mais duradouras, seja com Vignette, seja com Portia, a dona da pensam em que ele mora no Burgo.
Philo é metade Fae, um híbrido de uma relação entre um humano com uma fada. Suas asas foram cortadas quando ainda era um bebê, logo antes de ele ser abandonado num orfanato da igreja do Martyr. E assim ele cresceu entre os humanos do Burgo, a procura de respostas sobre os seus pais.
Das várias raças que vemos nas ruas do reduto, as duas principais são as fadas do Reino de Anoun e os faunos, a maioria refugiados de Puyoc, chamados pejorativamente pelos humanos de pixies e pucks. Ambos são largamente explorados em regime de semiescravidão pela indústria e pelo comércio do Burgo. Os faunos servem sua força sobre-humana a longos períodos de trabalhos braçais, enquanto a beleza exótica das fadas alimenta as redes de prostituição na cidade.
Em meio à fome e o desespero, o fauno Quill se integra em um grupo religioso em busca de orientação através dos Cyphers e da devoção ao Oculto (Hidden One). Estes faunos são reunidos em torno de Cabal, um líder religioso, que mais tarde se revela um extremista, e planeja ataques aos líderes políticos da República.
Finistere Crossing
Em Finistere Crossing, conhecemos os irmãos Ezra e Imogen Spurnrose, de uma linhagem tradicional e herdeiros de uma grande fortuna. Porém Erza, o irmão mais velho, perde toda riqueza familiar ao investi-la no negócio arriscado de travessia de refugiados de Tiranonc para a República do Burgo. Seu navio, o Deliverance, naufraga (sem seguro!) na primeira viagem. Ezra pretendia lucrar com o trabalho dos refugiados no Burgo, mas tudo o que lhe resta é uma sobrevivente, exatamente Vignette Stonemoss. A fada trabalha por um tempo na mansão dos Spurnrose, mas foge logo após sofrer um assédio de Ezra.
Ezra e a irmã, Imogen, precisam encontrar uma forma de recuperar sua fortuna. Ezra pensa em hipotecar a mansão Spurnrose, sua última propriedade, em troca de um empréstimo substancial que aplicará noutro investimento (um segundo navio). Mas Imogen tem outros planos.
Em meio à crise financeira dos Spurnrose, surge um vizinho rico e misterioso, o fauno Agreus Astrayon. Sua presença não é bem recebida em Finistere Crossing. Mas Agreus planeja comprar, através de uma aliança com Imogen, a sua aceitação pela aristocracia local. Os interesses dos vizinhos se encontram na encruzilhada entre o prestígio e a riqueza. E e as negociações entre Agreus e Imogen geram um dos romances mais inesperados da série, um tanto quanto inspirado em Orgulho e Preconceito, de Jane Austen.
Balefire Hall (King's Hill)
A República do Burgo é governada por um sistema parlamentarista bi-partidário, cujo líder é o Chanceler Absalom Breakspear.
O parlamento se reúne no palácio Balefire Hall, onde também vive a família do Chanceler. O governo do Burgo é totalmente composto por humanos e os parlamentaristas são votados pelos cidadãos. Tanto a cidadania quanto o voto são negados a qualquer criatura não humana, por mais integrada que ela esteja na sociedade da República do Burgo.
As circunstâncias não são favoráveis para o atual governo. A derrota na guerra contra o Pacto piorou um cenário já complicado de desemprego humano, exploração das criaturas mágicas e as tensões entre Fae e humanos. O Chanceler Breakspear é também líder do partido Commonwealth, mais favorável às políticas liberais e pacifistas, que no passado retirou a República da guerra que drenava todos os seus recursos. Seu governo está cada vez mais ameaçado pela popularidade em ascensão de Ritter Longerbane, líder da oposição e do partido Hardtrackers. Longerbane dá voz às insatisfações aristocráticas racistas e opressoras, contra quaisquer decisões que parecem favorecer os ‘critchers’ em vez dos cidadãos humanos do Burgo.
Neste cenário, acompanhamos as duas famílias principais, Breakspear e Longerbane, cujos conflitos pessoais e políticos afetam toda a República. A história das duas famílias Breakspear e Longerbane é mais complexa do que parece à primeira vista.
Ao lado de Absalom Breakspear está também sua esposa, Piety Breakspear, e seu filho e herdeiro, o playboy Jonah Breakspear. Piety é da família dos governantes do reino humano de Fohmoire, e devota às práticas de divinação chamada haruspexia, da colônia de Leonois. Quando se casou com Absalom, Piety trouxe consigo a fada Aoife Tsigani, ou a Haruspex, cujas predições salvaram sua família várias vezes no passado. Piety é extremamente ambiciosa e casou-se com Absalom por causa da profecia que anunciava que o filho dele se tornaria o maior líder desta era.
Este filho seria Jonah Breakspear, se Jonah não fosse na verdade filho biológico de Ritter Longerbane, antigo amante de Piety. Um segredo perigoso que Sophia Longerbane, filha de Ritter, descobre e usa para chantagear Piety. Em meio ao caos político causado pelas mortes de Ritter e Absalom, executados por Piety, Sophia alia-se a Jonah para estabelecer uma aliança entre as lideranças políticas do Burgo e dar início a um governo ostensivamente segregacionista e autoritário no final da temporada.
Colonialismo, Imperialismo e Política
Se tu fores como eu, e vês os dramas políticos em séries de Fantasia e Ficção como uma oportunidade de abordar temas fundamentalmente humanos que ampliam nossa perspectiva sobre nós mesmos, então talvez gostes deste tópico.
Para compreender os temas que circulam em Carnival Row, considero importante entender o contexto político, interno e externo, da República do Burgo, e a organização imperialista do mundo retratado na série. Algo que não é tão aprofundado no enredo (quanto eu gostaria), mas que é facilmente esclarecido em alguns parágrafos.
Como toda fantasia que se preze, tudo começa com um mapa:
Veja o mapa ampliado aqui.
Este mapa foi disponibilizado pela Amazon Prime e deveria ter sido mais bem divulgado junto com a série. Sua ausência não afeta tanto acompanhar da história, mas tê-lo consigo na hora de assistir ajuda a entender o conflito geral entre as criaturas mágicas e os humanos. Este conflito é apresentado na série a partir de duas perspectivas: a mais próxima das personagens que vivem na cidade do Burgo, que é a principal, e a perspectiva da guerra imperialista.
O estopim para os eventos no enredo depende da guerra entre o Pacto (a união de dois países, Quivira e Cibola) e a República do Burgo. Os países em guerra pertencem ao continente ocidental Mesogeo (hum, basicamente “Terra-Média” em grego), domínio dos povos humanos, que colonizaram alguns reinos do continente oriental chamado Tirnanoc, onde habitam as criaturas mágicas. A guerra entre os países inicia quando o Pacto leva uma campanha militar para Anoun, um território Fae de Tirnanoc controlado pela República do Burgo. E ela termina quando a República abandona Anoun, retira seus exércitos e deixa o território nas mãos do Pacto.
Com o fim da guerra e a derrota da República do Burgo, as fadas sobreviventes de Anoun e os refugiado de outros reinos mágicos migram em massa para a República, superpovoando a sua capital, o Burgo. Acho que a série apresenta menos informações do que deveria sobre como funcionam os regimes colonialistas, e sobre o Pacto e suas motivações para a guerra. Mas os humanos do Pacto parecem ser colonizadores muito piores do que os do Burgo, tendo em vista o modo como as fadas arriscam suas vidas ao fugir, e preferem se submeter à exploração e segregação na República pós-guerra.
É neste contexto que conhecemos a cidade do Burgo, sete anos depois de ter perdido seu território e absorvido os Fae que conseguiram escapar. A República do Burgo e sua capital eram familiarizadas com os imigrantes em sua sociedade. Contudo, a convivência relativamente pacífica tornou-se cada vez mais difícil depois da derrota na guerra, conforme o inchaço populacional aumentava e o custo da mão de obra local diminuía pela exploração das criaturas mágicas. Ingredientes apropriados para produzir altos índices de desemprego entre humanos, exploração em nível de escravidão das criaturas mágicas, racismo e extremismo.
Racismo, Segregação e Identidade
O contexto político estabelecido no enredo de Carnival Row lhe permite explorar diversos conflitos próprios destas circunstâncias. No plano externo da República estão as guerras imperialistas e a colonização que levam à exploração dos povos refugiados. E isto influencia os conflitos internos no país e na sua capital, com opressão, racismo, repressão e escravidão. Dentre os diversos temas em que a série toca, acredito que o Racismo, Identidade e Segregação sejam os principais, aqueles que movem o enredo e fundamentam as ações das personagens.
O colonialismo e o imperialismo levam ao confronto cultural que se desenvolve a partir da dominação de um povo sobre o outro. Essa dominação existe em várias escalas possíveis, desde a apropriação cultural, o apagamento identitário, a segregação e exploração, até o completo genocídio. E estes arranjos de poder no plano global levam às migrações forçadas, que eventualmente criam refugiados. Esse fenômeno é bem conhecido e estudado na nossa realidade, e é tomado como fonte realista para fundar o que aconteceria no mundo fictício de Carnival Row.
Selecionei alguns eventos da série que exemplificam consequências destes fenômenos, agrupados em três linhas temáticas: as identidades perdidas, a exploração do exótico, e o apagamento cultural.
O primeiro deles é a recorrência do tema das identidades perdidas. As fadas refugiadas chegam no Burgo como propriedades, destinadas a trabalhar para pagar a travessia pelo mar. Tourmaline é uma personagem que personifica bem a perda de identidade no plano individual. Ela foi no passado uma poetisa celebrada, mas ao chegar no Burgo como refugiada da guerra foi obrigada a prostituir-se. A perda do domínio sobre seu corpo e sua identidade ocorre noutras formas, como a perseguição da religião dos faunos de Puyoc, e a proibição das fadas de voarem.
A religião oficial no Burgo é dedicada a um deus sacrificado, chamado por eles de o Mártir. Qualquer outra religião não-humana é considerada barbárica e é reprimida. Isto inclui a religião do Hidden One, de Puyoc. Quill, ex funcionário do chanceler (demitido injustamente), une-se ao culto secreto liderado por Cabal em busca de sobrevivência, aceitação e proteção no grupo. A condição de exclusão empurra Quill para o núcleo mais extremista do culto, que se volta contra o preconceito e a violência cotidiana de modo igualmente agressivo, até escalar para o atentado à vida do Chanceler Absalom.
Voar é uma habilidade que distingue profundamente o modo de vida e a perspectiva das fadas em relação aos humanos. A proibição de voar afeta-os em sua constituição. Alguns aos poucos abandonam uma existência que lhes é natural para sobreviver, e outros se revoltam com a limitação injusta, mantida pelos humanos em prol da dominação de seu povo. É o que dá origem à gangue Black Ravens, formada por uma brigada de fadas que se recusam a seguir as restrições físicas, e mantém uma rede de proteção alternativa para-legal à comunidade Fae (além de praticar vários tipos de comércio ilegal).
O processo de despersonificação dos povos dominados também ocorre com a exploração da sua imagem “exótica”. Mais uma vez, recorro ao exemplo da prostituição das fadas, que é um negócio especialmente abundante no bairro mais pobre da cidade à serviço dos humanos. Até mesmo no uso das essências de feromônio Fae para atrair um marido, prática corriqueira das mulheres da aristocracia, é mais uma gota que se acrescenta à exploração sexual das fadas.
Além da exploração do corpo “exótico”, há também a exploração da arte “exótica”, que a comunidade humana usa e descarta quando lhes apetece. Vemos o retrato disto nas vidadas de Runyon Willworthy e seu teatro de Kobolts, e da cantora Aisling Querelle. Runyon perde seus amigos Kobolts, sua arte e seu meio de vida pelo preconceito, burocracia e completo descaso das autoridades do Burgo. Enquanto Aisling, que fora uma cantora de extremo talento e sucesso, precisou viver como indigente quando perdeu o favor da sociedade humana.
Talvez o exemplo mais forte da exploração do “exótico” seja o da apropriação da Biblioteca de Anoun, arrancada das raízes da sua montanha de origem e transportada para ser exibida um museu do Burgo. Numa exposição exclusiva para humanos, na qual nenhum “crich” poderia entrar desacompanhado de alguém. Mesmo quando a comunidade humana dominante aprecia o produto cultural dos povos dominados, em geral demonstram sua apreciação de modo violento e destrutivo, exploratório e despersonificado.
Noutra ponta do processo de segregação e racismo está o apagamento cultural. Toda criatura não humana, para ser de algum modo aceita na sociedade do Burgo, precisa se despir de sua origem e seus costumes para assumir uma posição determinada de servidão e submissão. Os vários servos faunos que convivem diariamente nas casas a serviço da aristocracia são o principal exemplo na série. Sua assimilação nesta sociedade envolve necessariamente o apagamento cultural, o preço que as Afissa e Jenila pagam para permanecer numa condição melhor (ou menos degradante) de vida que seus pares em Carnival Row.
A chegada de Agreus Astrayon em Finistere Crossing vem para demonstrar o quanto esta assimilação é parcial e a sua aceitação é frágil. Mesmo que o estrangeiro tenha deixado de lado todos os traços culturais que o tornam estrangeiro, ele não será capaz de pertencer. Agreus é extremamente rico, veste-se e se comporta conforme o apropriado para frequentar o círculo aristocrático da cidade, e busca uma participação como igual ao compartilhar os valores humanos da riqueza e da cultura local. Ele vê a cultura humana como superior e apesar da sua adesão total, a aceitação lhe é negada.
O hibridismo e a convergência de todos os temas
O hibridismo de Philo representa a unificação das perspectivas humana e Fae, e carrega a cicatriz deste conflito. Privado de sua identidade, Philo passou a vida em processo de assimilação da cultura opressora, até encontrar um senso de origem e liberdade ao entrar em contato com a cultura de Anoun. Não à toa, seu hibridismo é considerado pecaminoso e monstruoso pela sociedade do Burgo. O híbrido representa a possibilidade natural de convergência das raças segregadas. Ele nasce de uma grande artista Fae e de um futuro líder aristocrata do Burgo, e a sua origem – de uma relação consentida e amorosa – é quase uma romantização da aceitação do diferente.
Philo é colocado de frente para o espelho quando é confrontado com o Dark Asher, o monstro frankensteiniano criado por Piety para caçá-lo. Através da investigação dos assassinatos produzidos pelo Dark Asher que filho descobre a identidade dos seus pais. Esse monstro, composto por partes do corpo de várias raças diferentes, é um híbrido horrendo, nascido da magia negra e de uma mente pervertida pela ambição e preconceito. Ele representa a visão daquela sociedade sobre o hibridismo, tanto quanto um sinal daquilo que Philo pode se tornar (ou dar origem).
A série também coloca Philo no centro da vaga profecia feita pela Haruspex antes de seu nascimento. A profecia revelava que Absalom seria um grande homem muito importante, e que o filho que nasceria dele seria ainda mais importante. Philo é o provável objeto da profecia, já que a paternidade de Jonah é posta em questão pela infidelidade de Piety.
Recepção, Críticas e Respostas
A aproximação entre mundo fantástico e política em Carnival Row é tão forte, que vários críticos acusam a série de ser um enredo raso com mera reprodução alegórica de certas ideologias contemporâneas. Vários destes críticos também consideraram o enredo de pouca nuance, entulhado, que se leva a sério demais.
A meu ver, Carnival Row não possui um enredo perfeito, sofre com um problema de ritmo, e tenta abranger mais tópicos e temas do que consegue abordar de uma vez. Mas boa parte destas críticas parece revelar mais sobre quem as escreveu do que sobre a série. Eles, em geral, parecem maldispostos a apreciar o próprio gênero da Fantasia e as suas características inerentes, como a construção de um mundo fantástico alternativo e a abordagem imersiva (do tipo que tu aprendes o contexto conforme a história segue). E apesar de a série aplicar uma lógica política bem próxima da nossa realidade, os críticos falham em notar que eles próprios empregam uma perspectiva colonial-imperialista ao reclamar de personagens com nomes ‘estrambólicos’ e culturas estranhas, e ostentam falta de empatia pelos conflitos dos povos migrantes.
Enfim, se me perguntares se eu gostei de Carnival Row, eu te direi que sim, e que estarei à espera da segunda temporada. Tenho interesse e curiosidade em descobrir mais sobre aquele mundo e seus conflitos. Dito isto, listo algumas observações :
Há muitos elementos de fundo cuja explicação é tardia ou praticamente inexistente. Esta é uma característica própria da Alta Fantasia, de fato. Mas necessita mais parcimônia ao aplicar-se numa mídia audiovisual. Caso contrário, torna a história desnecessariamente difícil de acompanhar, quebrando o senso de imersão. Inclui complicações que tomam muito esforço e drenam o interesse imediato nos conflitos e nas personagens. E, infelizmente, roteiros originais tendem a angariar menos empatia ao apresentar um enredo complexo e profundo, e menos confiança de que a espera será recompensada.
A série aborda muitos tópicos sem que recebam tempo suficiente para que se desenvolvam em temas propriamente ditos, todos mais ou menos associados ao nosso mundo e nem todos diretamente ligados aos conflitos imediatos do enredo.
O romance e o conflito entre o casal principal, formado por Rycroft Philostrate e Vignette Stonemoss, não parece bem desenvolvido. Talvez se as cenas deles juntos durante a guerra estivessem espalhadas em flashbacks, em vez de num único episódio, o impacto da traição de Philo e do luto de Vignette seria maior. Do outro lado do rio Beorn, assistimos ao casal secundário crescer (um tanto quanto rápido), e nos importamos mais com a história de Imogen Spurnrose e Agreus Astrayon; Eles desenvolvem um romance instigante a despeito do pouco tempo que teve para desabrochar. Espero poder falar mais da comparação com a obra de Jane Austin noutro momento.
Apesar destes comentários, considero que Carnival Row ainda vale o tempo que custa para contar sua história. E a preparação dos escritores parece indicar na série o potencial de mitigar pelo menos alguns dos problemas da primeira temporada e desenvolver as várias pontas soltas na segunda.
TL:DR ~ Muito Longo – Li foi nada!
Já pode parar de comparar tudo com Game of Thrones.
Mas eu também comparei Carnival Row com Game of Thrones.
Era Vitoriana, luxo ou lixo?
Carnival Row é uma Fantasia Realista cujo drama político fictício é tão associado ao cenário político atual, que os imperialistas ex-colonizadores não curtiram muito o auto-retrato.
Temas de racismo e segregação encaixam como uma luva em fantasias povoadas por humanos e criaturas mágicas. #Dobbyisfree #Hermionewasright
Fico feliz de ver que as postagens deste blog tiveram continuidade e estão, na minha opinião, cada vez melhores e mais interessantes. Sobre Carnival Row, gostaria de fazer um comentário sobre o tratamento da questão da raça e da identidade. É bem clara, como você aponta, a intenção dos criadores da série de contribuir ao debate sobre imigração e xenofobia no contexto inglês não só do Brexit, mas de um neonacionalismo com traços fascistas que ganha penetração social e apoio eleitoral. Acho que a crítica de que a série hiper simplifica estes temas e serve de propaganda panfletária para o lado pró-imigratório e pró-Europeu deriva de uma apreciação precipitada da verdadeira estratégia da série (que é neste ponto uma das…
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Hello, Kate! I really appreciate your interest in reading my Blog and I grateful for your comments! I will answer them soon. The missing topic will be up in the next few hours, hopefully. I'll comment again when it's done. And I'd be grateful to know your impressions as well.
What about the topic on racism, segregation, and identity? Is it still coming?