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Foto do escritorFernanda Borges da Costa

Belas Maldições (S01)

Atualizado: 25 de dez. de 2019

“Bem-vindo ao Fim dos Tempos!”

[Contém Spoilers]

Última alteração em 25/12/2019 às 21h15



O Anticristo nasceu e o mundo vai acabar três dias depois do seu décimo primeiro aniversário. No próximo sábado, na hora do chá. E ele reinará quando a Terra for destruída.


A minissérie Belas Maldições conta a história de um anjo e um demônio que se tornam aliados improváveis na missão de impedir que o Anticristo, um menino de 11 anos, traga o Fim dos Tempos. Do outro lado do ringue temos o Céu e o Inferno ansiosos pelo Armagedom, prontos para guerrear até a destruição completa de toda a criação. E no meio, está Anathema Device e o livro de profecias de sua antepassada, Agnes Nutter – a última bruxa na Inglaterra e a única pessoa que previu com perfeição todos os eventos que antecedem o Apocalipse.


Está série baseia-se no livro “Belas Maldições: As Belas e Precisas Profecias de Agnes Nutter, Bruxa”, lançado em 1990 e escrito em conjunto pelos autores ingleses Terry Pratchett e Neil Gaiman.


Fiquei muito animada quando eu soube que Neil Gaiman faria a adaptação deste livro para uma série de TV. Não apenas porque gosto muito da história, mas também porque tenho um enorme carinho por ambos os autores, cujos livros eu li desde bem jovem e suas narrativas tiveram um papel importante na minha formação. Ouvi falar de Neil Gaiman pela primeira vez quando meu irmão me apresentou Sandman. Foi também a primeira vez que compreendi que as minhas obras favoritas de Fantasia dialogavam com os grandes clássicos da literatura. De uma só vez passei a amar Sandman, Gaiman e Shakespeare. E antes mesmo disso, eu conheci Terry Pratchett. Seus livros se tornaram algo tão especial para mim que chorei ao receber a notícia de sua morte, em 2015.



Há quase vinte anos encontrei alguns livros da coleção Discoworld num sebo enquanto passeava com minha mãe na Feira Pan-Amazônica do Livro. A capa colorida e os desenhos engraçados me chamaram atenção, mas foi o que encontrei dentro deles que me marcou para sempre. O humor sarcástico e mordaz de Pratchett, capaz de revelar as perversões da realidade através das lentes da Fantasia, ensinou-me a ver as linhas invisíveis das convenções injustas e arbitrárias, a encarar com mais humor e sensatez até mesmo os piores momentos da vida e, enfim, a rir do absurdo. Pratchett tornou-se como que um amigo distante, escrevendo cartas de incentivo e encorajamento através das suas histórias.


No futuro escreverei postagens sobre e livros. Por agora, retomamos a programação normal com Belas Maldições.



Tanto Pratchett quanto Gaiman são escritores que exploram o gênero fantástico pervertendo expectativas sobre como a realidade normalmente é ou deveria ser. E é desse modo que Belas Maldições, com muito humor e ironia, aponta absurdos invisíveis nas coisas mais mundanas, tal como a corrupção intrínseca a que toda criança gerada numa família rodeada de poder e riqueza está exposta. (Sem dúvida que se Warlock fosse mesmo o Anticristo ele teria causado o Armagedom.)


Desta mesma forma, a série deturpa o que se espera (ou se teme) que ocorra no Fim dos Tempos. Selecionei três perguntas que exploram o inesperado e descrevem bem os temas e os eventos que perpassam os seis episódios de Belas Maldições.


1. E se o Anticristo for uma criança normal?


Todos os planos do Céu e do Inferno para a chegada do Fim dos Tempos dependem de um só fator. Que o Anticristo cresça na Terra e assuma seus poderes no dia seu aniversário de 11 anos, quando encontrar e nomear o seu Cão do Inferno. Mas por um misto de erro, incompetência e pura chance, os bebês são trocados na maternidade das freiras satânicas, e o pequeno filho de Satã é criado no interior da Inglaterra.


Adam se torna um menino normal e vive na pequena cidade britânica de Tadfield com seus amigos, o grupo chamado “Eles”. Adam é o seu líder e inventa as melhores brincadeiras. É ele o Anticristo, e não Warlock, o menino mimado criado pelo embaixador americano residente em Londres.



2. E se um anjo e um demônio cooperarem para impedir o Armagedom?


A guerra entre Céu e Inferno é iminente. Aziraphale e Crowley são os agentes do Céu e do Inferno que vivem na Terra para observar e influenciar para o bem e para o mal a humanidade. Com a perspectiva do Fim dos Tempos, o anjo e o demônio tornam-se aliados hesitantes em prol de impedir que a sua casa nos últimos seis mil anos seja destruída. Encachaçados com Châteauneuf-du-Pape e horrorizados com a ideia de passar a eternidade entre seus pares, eles decidem salvar todas as criaturas, grandes e pequenas. Junto com bebidas alcoólicas, livrarias, músicas e as criações humanas que aprenderam a apreciar.


Crowley, então, sugere o plano perfeito. Ele e Aziraphale entrarão na vida do menino que acreditam que se tornará o Anticristo, e o influenciarão igualmente para o bem e para o mal. Este plano pressupõe que a influência de ambos cancelará um ao outro e, no final, o filho das trevas se tornará apenas uma criança normal.



3. E se uma bruxa profetizar perfeitamente o Apocalipse?


Em uma narrativa povoada de anjos e demônios a única pessoa que realmente sabe o que está acontecendo, ou melhor, o que vai acontecer, é uma bruxa que morre na fogueira da inquisição. Agnes Nutter não só prevê o Fim dos Tempos como também planeja o exato caminho que suas descendentes devem seguir para impedi-lo. É assim que chegamos em Anathema Device, que para salvar a humanidade deve escolher abandonar toda a escolha e viver exatamente como sua antepassada previu.



Livre Arbítrio


Se seguires aquelas perguntas, perceberás que Belas Maldições é contada em três perspectivas principais. A história de Adam, as aventuras de Crowley e Aziraphale, e a missão de Anathema. Vou destacar aqui um tema que perpassa todas as três, e veja se te parece interessante.


As três perspectivas podem ser interpretadas a partir da questão da escolha, ou seja, dialogam com o tema do livre arbítrio. O livre arbítrio é o dom divino dado à humanidade. Nenhuma outra criatura é capaz de autodeterminação, de exercer completa liberdade de escolha sobre suas ações.


Anjos e demônios não possuem livre arbítrio. A série caracteriza-os como incapazes de desobedecer ao plano divino e a função pela qual foram criados. Mas Crowley e Aziraphale são diferentes. Talvez por coexistirem com a humanidade por tanto tempo, os dois não apenas tenham n um gosto especial por vinho, mas também tenham desenvolvido capacidade de escolha. Afinal, eles tiveram seis mil anos para praticar desde o primeiro dia que escolheram algo: o dia em que Crowley, antes chamado Crawly (“rastejante”, em inglês), por sua própria vontade convenceu Eva a comer o Fruto Proibido, e Aziraphale, antes guardião do Portão Leste do Jardim do Eden, temeu pela segurança do casal primordial e escolheu ceder a sua espada flamejante para Adão depois da expulsão.


“Se eu tiver feito a coisa boa e você, a ruim."


Por outro lado, Anathema Device, mesmo sendo humana, decide não exercer liberdade de escolha frente livro de profecias. A palavra “device” em inglês pode ser traduzida como “instrumento”, e anátema significa algo execrado, expurgado, uma maldição. (Curiosamente, o termo técnico na doutrina católica significa uma excomunhão, enquanto seu sentido originário grego antigo significa “algo posto sobre” e seu uso correspondia ao sentido de “oferenda aos deuses”.) A jovem descendente de Agnes Nutter é o instrumento da maldição. Anathema precisa escolher sê-lo, pois esta é a única forma de impedir o Armagedom.



Adam está numa encruzilhada entre ser o que ele é, ou ser o que ele quer ser. Ele existe para trazer o Fim dos Tempos, mas se recusa a fazer isto. Criado como um menino normal, entre amigos, ele não se vê como o Anticristo nem como filho de Satã. E é isto que impede o Armagedom. Adam representa uma jornada de autodeterminação.




Determinismo

Do lado oposto ao livre arbítrio está o determinismo. Determinismo é a teoria de que tudo o que existe e tudo o que acontece está predeterminado. A presença de um plano divino aparece várias vezes em Belas Maldições, e todos os agentes da narrativa, sejam eles humanos, anjos, demônios, ou mesmo os Cavaleiros do Apocalipse, parecem agir de acordo com ele. Mas apesar de ser a narradora da série, Deus não nos diz qual é o plano. Logo, não é possível sabermos qual seria este plano ou se ele se cumpriu como fora planejado.


Será mesmo?

“Eu jogo um jogo inefável de minha própria autoria. Para os outros, é como jogar pôquer em uma sala totalmente às escuras, com apostas infinitas, um dealer que não explica as regras e sorri o tempo todo.”


O modo como os eventos se desenrolaram em Belas Maldições pode nos dar uma explicação.


Comecemos com a pergunta: quem realmente teve alguma agência sobre o Fim dos Tempos? Os anjos e os demônios queriam a vinda do Armagedom, não por uma escolha pessoal, mas porque era isto que estava previsto para acontecer. E por estar previsto, era o que acreditavam ser o plano divino. Mas o que estava previsto não aconteceu. Por quê?


Porque algumas personagens escolheram outra coisa. Não foram os anjos ou os demônios, não foi o Céu e o Inferno, não foi nem mesmo Deus ou Satã, quem determinou os eventos em Belas Maldições. As escolhas livres é que determinaram. O Fim não veio por Aziraphale e Crowley desejarem continuar vivendo na Terra, por Adam escolher quem ele gostaria de ser, por Newton escolher acreditar em Anathema.


E Anathema representa um paradoxo. Para fazer o que ela quer, ela precisa abdicar de sua liberdade e executar todos os passos previstos por sua tátara-tátara-tátara-tátara-tátara vó. Ela exerce seu livre arbítrio escolhendo todos os dias não escolher nada diferente do que as profecias dizem. E fica evidente que é a escolha o verdadeiro veículo da liberdade, pois é possível exercer escolha ao não escolher. E o princípio disto é Agnes Nutter.


A onisciência de Agnes Nutter é sua conexão com Deus. Ela que previu o futuro com perfeição e escolheu não assumir que o futuro estava determinado por isso. Não considerou que o Fim dos Tempos ocorreria apenas por estar previsto que iria acontecer. Previsão não pressupõe factualidade. E note que todos seguem o plano divino criado por Deus, do mesmo modo que Anathema segue os planos descritos nas previsões da bruxa. O primeiro é Determinismo, o segundo é Livre Arbítrio..


Não foi o ato de prever que tornou verdadeiras as previsões de Agnes Nutter, mas a escolha de impedir algo que estava previsto de acontecer. Foi a bruxa escolher escrever um livro que diz como suas descendentes deveriam agir, bem como foi a escolha delas de seguir seu livro, que impediu o Fim. Então o plano divino não era que o Armagedom aconteceria tal como previsto. O plano divino era que as escolhas livres de todos os envolvidos determinaria o que iria acontecer.


O complexo jogo de cartas posto por Deus tem suas regras explicitadas pela ação de Agnes Nutter. O plano divino é, de fato, determinado pelo livre arbítrio.


Fica a questão: Agnes Nutter previu o Fim dos Tempos e a partir desta previsão viu como intervir para impedi-lo, alterando o futuro, ou ela previu que o Fim dos Tempos na verdade não aconteceu, já que ela previu todos os eventos necessários para impedi-lo?


TL:DR ~ Muito Longo – Li foi Nada!

  1. Anjos e Demônios querem o fim da humanidade e são impedidos por um anjo e um demônio que se recusam a fazer o lhes foi mandado.

  2. É melhor passar algumas vidas na Terra do que a eternidade assistindo A Noviça Rebelde.

  3. Tu podes ser quem quiseres ser, independente do que dizem – mesmo se você for o Anticristo.

  4. Livre Arbítrio é definido pela capacidade de escolha. Aparentemente, determinismo também.

  5. Belas Maldições é o inverso de Édipo Rei.


O quê na série te chamou mais atenção? Também queres ver toda uma temporada com aventuras passadas de Crowley e Aziraphale? Deixe sua opinião sobre a postagem nos comentários, vamos discutir!


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4 Comments


Lucas Do Couto Gurjão
Lucas Do Couto Gurjão
Jan 17, 2020

Gostei bastante da análise! Como sabes, também sou fã do Gaiman e do Pratchett, em especial deste último que me é tão caro, e o que falaste sobre ele e sobre os seus livros ressoou bastante comigo. O livro ainda é melhor que a série, mas eu gostei bastante como ela foi executada. É bem difícil traduzir o humor típico do Pratchett pra outras mídias, mas eu creio que série se esforça. Acho que o livro consegue deixar mais claro também a questão do livre arbítrio e da escolha, em especial no que diz respeito ao Adam e as escolhas que ele tem para decidir quem quer ser. Destaco positivamente o Tennant, maravilhoso, e o Sheen, fantástico, como os protagonistas.…

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Kate MacBryte
Kate MacBryte
Jan 03, 2020

I love Neil and Terry, both as writers and as people. So I don't believe that I am anything near impartial to this jolly piece of literature they joined forces to bless us with. I enjoyed your review very much and, if that's not a problem, would like to dare a contribution myself.


One of the things we can't help but notice is that, while reading it, we root for Aziraphale and Crowley, but not for their angelic and demonic companions and superiors. And why is that? In part, because we are partial to our everyday life, with tea and biscuits, and Apocalyptic wars is not our idea of weekend fun, yes. But that's not all.


We also like who…


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Vitória
Dec 25, 2019

Excelente análise! Não precisou de muitos parágrafos para me convencer a ler o livro ou assistir à série. Chamou a minha atenção as "brincadeiras" que a narrativa faz com cenários improváveis e situações absurdas para tratar dos temas que ela elegeu, especialmente a dicotomia determinismo e liberdade, que achei muitíssimo interessante. No mais, o seu texto tem o mérito de expor claramente a narrativa "à sua melhor luz" para alguém que, como eu, não conhecia absolutamente nada da história e tem o poder de convencer da sua profundidade e importância para algumas das questões mais fundamentais da nossa existência por esse mundo maluco e complexo. Continue assim e espero ansiosa pelas próximas postagens. (>^-^)> ~ ♡

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Prof. André Coelho FND-UFRJ
Prof. André Coelho FND-UFRJ
Dec 25, 2019

Algo que certamente me chamou a atenção foi como Gaiman e Pratchett exploraram certos lugares-comuns dos livros, filmes e séries de espionagem da época da Guerra Fria para representar a competição e colaboração entre anjos e demônios que, estando longamente na Terra e acostumados a um mundo dividido, teriam na verdade muito a perder se um dos lados da guerra, mesmo que fosse o seu próprio lado, triunfasse sobre o outro de modo definitivo. Como os espiões, que veem no companheiro do outro lado do campo um igual mais próximo do que seus superiores burocratas, que aprendem a servir à disputa mais do que somente aos lados disputantes, que notam que o fim da guerra os tornaria desnecessários e os…

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